O
termo accountability, atributo da boa governança no setor público,
está associado à qualidade da democracia, da gestão, e da
transparência, bem como à efetividade dos controles institucionais
e social, que, em síntese, buscam prevenir irregularidades e também
assegurar a responsabilização dos agentes que se desviaram da rota
republicana.
A
recente decisão do STF transferindo dos Tribunais de Contas às
Câmaras de Vereadores a competência para julgar as contas de gestão
de prefeitos é um passo atrás em nossa accountability, pois
compromete, em grande medida, a efetividade do controle e o propósito
fundamental da Lei da Ficha Limpa, que é o de melhorar a qualidade
da gestão e da democracia.
E
esse retrocesso ocorre justamente quando o cidadão clama por mais
ética na política, pelo fim da impunidade e por uma administração
que garanta a excelência na prestação dos serviços públicos, com
destaque para a educação, a saúde e a segurança.
A
Lei da Ficha Limpa, uma das poucas legislações de iniciativa
popular, foi aprovada exatamente para concretizar esses desejos da
sociedade. Para dirimir dúvidas, o diploma (alínea g do inciso I do
artigo 1º) deixou claro que se o detentor de mandato eletivo
(presidente, governador ou prefeito) praticar atos típicos de gestão
(assinar empenhos, homologar licitações, firmar contratos e
determinar pagamentos, etc.), ele será tratado de forma idêntica à
dos demais ordenadores de despesa, ficando, como tal, sujeito ao
julgamento pelos Tribunais de Contas, nos termos dos artigos 71,
inciso II, e 75 da Constituição. Neste caso, o julgamento do
Tribunal não poderá sofrer interferência do Legislativo, como
ocorre com qualquer agente que administre recursos públicos,
sujeitando-se o mandatário, ainda, nos termos dos artigos 71, VIII,
§3º, e 75 da Lei Maior, à aplicação de sanções e à imputação
de débito, com eficácia de título executivo.
Assim,
o Prefeito que decidir ordenar despesas é submetido a dois regimes
de prestação e julgamento de contas. Além das contas de gestão,
julgadas privativamente pelos Tribunais de Contas, como vimos, ele é
responsável pelas chamadas contas de governo, cujo conteúdo, bem
mais limitado, abrange os balanços e demonstrativos orçamentários
e financeiros, a observância dos limites constitucionais em educação
e saúde e os limites de pessoal e endividamento da LRF. É neste
último caso (contas de governo) que a Câmara é competente para
julgar, mediante parecer prévio do Tribunal de Contas, conforme
prescreve a Constituição, nos artigos 31, 71, I, e 75.
Vale
dizer que o próprio STF, ao analisar a Lei da Ficha Limpa em 2012,
por meio das Ações Declaratórias 29 e 30, de iniciativa da OAB,
considerou constitucional todo o conteúdo da referida "alínea
g". Foi justamente essa decisão do STF que levou o TSE a mudar
de posição, passando a considerar a rejeição das contas de gestão
do prefeito pelos Tribunais de Contas como um dos critérios para
gerar a inelegibilidade dos candidatos. Para se ter uma ideia da
relevância desta hipótese de inelegibilidade, a impugnações
decorrentes atingiram o expressivo percentual de 66% de todas aquelas
ocorridas nas eleições municipais de 2012. Ademais, ainda que seja
correto afirmar que todas as leis podem ser aprimoradas, em relação
à da Ficha Limpa não se aponta nenhum caso em que a inelegibilidade
declarada pela Justiça Eleitoral tenha caracterizado um absurdo ou
injustiça.
E
quais as consequências dessa nova inflexão já para as eleições
de 2016? A primeira é que, conforme a Atricon (Associação dos
Membros dos Tribunais de Contas), mais de cinco mil prefeitos e
exprefeitos no país, que tiveram suas contas de gestão rejeitadas
pelos Tribunais nos últimos oito anos, ficarão imunes ao benfazejo
filtro da inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa. Além disso, o mesmo
levantamento aponta que mais de 4 bilhões de reais em multas e
débitos imputados a eles correm sério risco de não retornarem aos
cofres públicos. A segunda é que as contas de gestão, antes
julgadas, tecnicamente e com a observância do devido processo legal,
pelos Tribunais de Contas, órgãos integrados por servidores de
reconhecida qualidade e compostos por membros dotados de direitos e
garantias da magistratura — com a devida interveniência do
Ministério Público de Contas —, agora passarão a sê-lo pelas
Câmaras de Vereadores, que, histórica e sabidamente, por razões
eminentemente políticas ou estruturais, negligenciam do exercício
de sua função fiscalizadora.
A
propósito da conveniência da participação dos Tribunais de Contas
neste processo, vale ressaltar a confiança de que desfrutam junto à
sociedade, conforme os dados da recente pesquisa CNI/Ibope, quando
cerca de 90% dos entrevistados que conhecem sua atuação
reconheceram a importância desses órgãos no combate à corrupção
e à ineficiência. Decerto que o direito e sua interpretação não
são estáticos e as decisões da Suprema Corte merecem o devido
respeito, ainda que delas se possa discordar, como o fazemos neste
caso concreto. Nada obstante, enquanto houver possibilidade de
evolução jurisprudencial, envidaremos todos os esforços para
sensibilizar o STF a restaurar a plenitude do entendimento, esposado
em 2012, sobre a Lei da Ficha Limpa.
Entrementes,
para se evitar a manifesta insegurança jurídica, cabe esclarecer
todas as possíveis implicações da tese aprovada sobre as demais
competências dos Tribunais de Contas, a exemplo da aplicação de
multas, sustação de atos ilegais, determinação de ressarcimentos
e julgamento de convênios, em relação a atos de gestão de
Prefeitos. A propósito, não podemos esquecer que foi o mesmo STF
quem fortaleceu, por meio de evolução jurisprudencial, os Tribunais
de Contas em relação à competência para julgar contas de gestores
de empresas estatais, como a Petrobrás.
Esperançar
por uma interpretação que confira máxima efetividade aos preceitos
da Carta Magna é preciso, em nome da boa governança pública, da
accountability e da democracia.
Márlon
Reis é
advogado, doutor em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas
pela Universidad de Zaragoza, Espanha, e cofundador do Movimento de
Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE)
Valdecir
Pascoal é
presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas
(Atricon) e Conselheiro do TCE-PE
*o
artigo foi publicado nesta sexta-feira (26/8) no Blog
do Fausto Macedo no
site do jornal O
Estado de S. Paulo.
Fonte: "tce.rj"
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