Vladimir Safatle. Foto: Wikipédia |
Este
é um artigo que gostaria de não ter escrito e não tenho prazer
algum em fazer enunciações como a que dá corpo ao título. No
entanto, talvez não haja nada mais adequado a falar a respeito da
situação política brasileira atual, depois de um ano de
Governo Jair Bolsonaro e
a consolidação de seu apoio entre algo em torno um terço dos
eleitores. Aqueles que acreditavam em alguma forma de colapso do
Governo e de sua base precisam rever suas análises.
O
que vimos foi, na verdade, outro tipo de fenômeno, a saber, a
inoperância completa do que um dia foi chamado de “a esquerda
brasileira” enquanto força opositora. Não que se trate de afirmar
que ela está diante do seu fim puro e simples. Melhor seria dizer
que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina
agora. O pior que pode acontecer nesses casos é “não tomar
ciência de seu próprio fim” repetindo assim uma situação que
lembra certo sonho descrito uma vez por Freud na
qual um pai morto continua a agir como se estivesse vivo. A angústia
do sonho vinha do fato do pai estar morto e nada querer saber disto.
Se a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como
destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que
termina, o que ele representou, quais seus limites.
Signos
não faltaram para tal diagnóstico terminal. Contrariamente ao
discurso de que o Governo
Bolsonaro estaria
paralisado, vimos ao contrário a aprovação de medidas até pouco
tempo impensáveis, como a reforma
previdenciária,
isso sem nenhuma resistência digna deste nome. Ou seja, a maior
derrota da história da classe trabalhadora brasileira foi feita sem
que anotassem sequer o número da placa do carro responsável pelo
atropelamento. Uma reforma da mesma natureza, mas menos brutal, está
a tentar ser imposta na França.
O resultado é uma sequência de greves e manifestações de vão já
para o seu terceiro mês. Na verdade, o que vimos no Brasil foi
o contrário, a saber, governos estaduais pretensamente de esquerda a
aplicarem reformas estruturalmente semelhantes. Como se fosse o caso
de dizer que, no final, governo e oposição comungam da mesma
cartilha, sendo distinta apenas a forma e a intensidade de sua
implementação. Fato que já havíamos visto com o segundo Governo
Dilma e
sua guinada neoliberal capitaneada por Joaquim
Levy.
Isso
é apenas um sintoma de que a esquerda
brasileira não
é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político. Durante
todo o ano de 2019, diante de um Governo cujas políticas visam a
retomada, em chave autoritária, dos processos de concentração de
renda, de acumulação primitiva e de extrativismo colonial, não
foram poucos aqueles que esperaram da esquerda brasileira (todos os
partidos e instituições inclusas) a expressão de outro tipo de
política. A esquerda governa estados, municípios grandes e
pequenos, mas de nenhum deles saiu um conjunto de políticas que
fosse capaz de indicar a viabilidade de rupturas estruturais com o
modelo neoliberal que nos é imposto agora. Houve época que a
esquerda, mesmo governando apenas municípios, conseguia obrigar o
país a discutir pautas sobre políticas sociais inovadoras, partilha
de poder e modificação de processos produtivos. Não há sequer
sobra disto agora.
Talvez
seja o caso de insistir neste ponto porque, como dizia Maquiavel, o
povo prefere um governo ruim a governo nenhum. Não são as
qualidades do Governo Bolsonaro que
dão a ele certa adesão popular. É o vazio, é o fato de não haver
nenhuma outra alternativa realmente crível neste momento. E a razão
disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou seu limite
e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo. Isso vale tanto para
partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me
incluo). Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos
desafios efetivos. O melhor a fazer seria começar a se perguntar
pela razão de tal situação.
Coloquemos
uma hipótese de trabalho: a esquerda
brasileira conhece
apenas um horizonte de atuação, este que atualmente chamaríamos de
“populismo
de esquerda”.
Foi ele que se esgotou sem que a esquerda nacional tenha se
demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar o
que poderia ser “outra fase”. Entende-se por populismo de
esquerda um modelo de construção de hegemonia baseado na emergência
política do povo contra as oligarquias tradicionais detentoras do
poder. Este povo é, na verdade, produzido através da convergência
de múltiplas demandas sociais distintas e normalmente reprimidas.
Demandas contra a espoliação de setores sociais, contra a opressão
racial, contra os legados do colonialismo: todas elas devem convergir
em uma figura que seja capaz de representar e vocalizar esta
emergência de um novo sujeito político.
No
entanto, o caráter nacionalista do populismo permite
também a inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da
burguesia nacional dispostos a ter um papel “mais ativo” nas
dinâmicas de globalização. Assim, o “povo”, neste caso, nasce
como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma
mistura de JBS
Friboi com MST.
Este
é o modelo que a esquerda nacional tentou implementar em sua
primeira tentativa de governar o Brasil: a que termina com o golpe
militar contra o Governo João
Goulart.
Na ocasião, um dos personagens mais lúcidos de então, Carlos
Marighella,
faz um diagnóstico preciso: a esquerda havia apostado na conciliação
com setores da burguesia nacional e com setores “nacionalistas”
das forças armadas dentro de governos populistas de esquerda. Ela
colocou toda sua capacidade de mobilização a reboque de uma
política que parecia impor mudanças seguras e graduais. Ao final,
tudo o que ela conseguiu foi estar despreparada para o golpe, sem
capacidade alguma de reação efetiva diante dos retrocessos que se
seguiriam.
A
lição de Marighella não
foi ouvida. Tanto que a esquerda brasileira fará o mesmo erro com o
final da ditadura militar e com o advento da Nova República. A
história será simplesmente a mesma: o movimento em direção a um
jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de oligarquias
locais descontentes tendo em vista mudanças “graduais e seguras”
que serão varridas do mapa na primeira reação bem articulada da
direita nacional.
Nesse
sentido, nossa história segue os passos da história argentina:
outro campo de ensaio do populismo de esquerda. Mas há um diferença
substancial aqui. Depois da experiência ditatorial,
a Argentina soube
criar um linha de contenção de impulsos golpistas. Hoje, quase mil
pessoas ainda se encontram nas cadeias argentinas por crimes da
ditadura. No Brasil, ninguém foi preso. A resposta argentina
produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que
permitiu ao peronismo ter ressurreições periódicas. Dificilmente,
essa será a história brasileira daqui para frente, pois o risco de
deriva militar é real entre nós.
Mas
há ainda um outro fator decisivo. O colapso do lulismo não
foi seguido apenas de um golpe parlamentar apoiado em práticas
criminosas de setores do poder judiciário. Ele foi seguido da
criação de uma espécie de antídoto à reemergência do corpo
político populista. O que vimos, e agora isto está cada vez mais
claro, foi a emergência de um corpo fascista. Mas o corpo político
fascista é normalmente a versão terrorista e invertida de um corpo
político anterior, marcado pela emergência do povo e pelas
promessas de transformação social. Dessa forma, ele acaba por
bloquear sua ressurgência. Já se disse que todo fascismo nasce de
uma revolução abortada. Nada mais justo.
Theodor
Adorno um
dia descreveu o líder fascista como uma mistura de King Kong e
barbeiro de subúrbio (certamente pensando no Chaplin de O
grande ditador).
Essa articulação entre contrários é fundamental. A pretensa
onipotência do líder fascista deve andar juntamente com sua
fragilidade. O líder fascista deve ser “alguém como nós”, com
a mesma falta de cerimônia, a mesma simplicidade e irritação que
nós. A identificação é feita com as fraquezas, não com os
ideais. Ele deve ser alguém que come miojo em banquetes
presidenciais, que se veste de maneira desajeitada como alguém do
povo. Ele deve a todo momento dizer que está a combater as elites
que sempre governaram esse país (que agora serão os artistas, as
universidades, os “cosmopolitas” e “globalistas”). Ele deve
mostrar que não é alguém da elite política, que na verdade tal
elite o detesta. Pois se trata de criar um antídoto para toda forma
de tentativa de recuperar a produção do povo como processo de
emergência de dinâmicas de transformação social.
Dessa
forma, tudo se passa como se Bolsonaro fosse
uma versão militarizada de seu oposto, a saber, Lula.
Não se trata com isso de afirmar que estamos presos em uma
polaridade. Ao contrário, trata-se de dizer que tudo foi feito para
anular a polaridade real, criando um duplo imaginário. Nunca
entenderemos nada das regressões fascistas se não compreendermos
estas lógicas dos duplos políticos. Se há algo que nos falta é
exatamente polaridade. Temos pouca polaridade e muita duplicidade.
O
fato é que tal dinâmica demonstrou-se eficaz. Ela quebrou os
processos de incorporações populistas que
foram, até agora, a alma da esquerda brasileira. Por isso, o que
vemos agora é uma esquerda sem capacidade de ação, pois atordoada
com o fato de a direita brasileira ter, enfim, produzido a sua figura
com capacidade de incorporação do povo, agora sem o erro de apostar
em um egresso da elite político-econômica (Collor) ou em alguém
sem vínculos orgânicos com o militarismo fascista (Jânio).
Numa
situação como essa, a esquerda nacional ainda paga o preço de ter
sido formada para a coalizão e para a negociação. Esse é seu DNA,
desde a política de alinhamento do PCB aos
ditames anti-revolucionários do Soviete Supremo. Por isso, ela não
sabe o que fazer quando precisa mudar o jogo e caminhar para o
extremo. Sua inteligência não age nesse sentido, suas estruturas
não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido.
Seus movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma
sustentação ou coordenação de médio e longo prazo. Foi assim que
ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que
chegar a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim.
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