Nos
autos do processo nº 0001270-88.2008.4.02.5108, que transita na 02ª
Vara Federal de São Pedro da Aldeia, na qual o MPF pede a demolição
de construções irregulares sobre o costão rochoso do canto
esquerdo da Praia da Ferradura, a Juíza
Federal Angelina de Siqueira Costa, em sua sentença,
proferida em 24/10/2014,
avaliou como “recalcitrante” a conduta do réu
Philippe, tendo em vista que diversos autos de infração contra ele
lavrados e termos de embargo foram descumpridos, o que demonstra sua
postura de total descaso com a questão ambiental.
“Inexiste
nos autos qualquer licença ambiental concedida por
órgão competente para autorizar a construção erigida sobre os
lotes onde se deu a construção do Hotel Insólito”, afirma a
Juíza.
Para
demonstrar o “absoluto descaso com a questão ambiental” por
parte do réu Philippe Meuus, a Juíza Angelina de Siqueira Costa
descreve os documentos anexados ao processo administrativo nº
1.30.009.000109/2005-95, considerados por ela “dotados de
relevância na análise do caso em tela”.
UM
POUCO DA HISTÓRIA DO PROCESSO
O
procedimento administrativo nº 1.30.009.000109/2005-95,
que instrui a petição inicial da ACP nº 0001270-88.2008.4.02.5108,
inicia-se a partir de representação
feita ao MPF por MANOEL EDUARDO DA SILVA,
mais conhecido como MARRECO, acerca de eventuais
irregularidades em construções nos costões rochosos,
causando danos ao meio ambiente, e possível
omissão
do IBAMA e da PREFEITURA MUNICIPAL DE ARMAÇÃO DOS BÚZIOS.
Os
fatos apurados no processo administrativo desaguaram no ajuizamento
de cinco ações civis públicas, em face dos proprietários dos
lotes do Condomínio do Atlântico, responsáveis por tais
construções em área de preservação permanente, levadas a cabo
sem as devidas autorizações dos órgãos ambientais.
Marreco
protocolou a representação em 05/10/2005, acompanhada
por diversas notícias de jornal contendo também fotos. Além disso,
juntou cópia de correspondência enviada ao Secretário Municipal do
Meio Ambiente, narrando as irregularidades verificadas,
bem como anexando mapas, croquis e informações técnicas sobre os
ecossistemas dos costões rochosos. Correspondência também foi ao
MPF, requerendo providências, sobre notícia veiculada em jornal
local que falava sobre a “privatização” da Prainha da
Ferradura e sua obstrução.
Como
presidente da Associação Protetora dos Afloramentos Rochosos
Litorâneos (APARLI), Marreco prestou esclarecimentos ao MPF
relatando “violações ambientais e paisagísticas nos
costões rochosos da Praia da Ferradura e o impedimento trazido pelas
obras lá realizadas para que os pescadores da garoupa possam efetuar
a pesca a partir dos costões”. A APARLI-BÚZIOS
também requereu a juntada de jornal local, contendo notícia sobre o
embargo interposto pela FEEMA sobre obra no canto esquerdo da
Ferradura.
DOCUMENTOS
DO PROCESSO ADMINISTRATIVO
1)
DOCUMENTOS DO MUNICÍPIO DE BÚZIOS:
1.1)
Ofício do Município de Búzios (09/05/2006)
Esclarecendo
ao MPF que não pode informar se emitiu ou não licenças de
construção em área de costões rochosos por não ser “encontrada
na literatura técnica nem nos glossários relacionados às
legislações que tratam do tema, uma
definição que permita delimitá-lo fisicamente”.
Informa ainda que o Plano Diretor da cidade está em elaboração.
1.2)
Ofício do Município de Búzios para o MPF
Informando
que não constam nos registros da Secretaria Municipal de
Planejamento e Urbanismo licenças ou autorizações para construção
de imóveis em área de costões rochosos. Informa ainda que já
existem imóveis construídos “naquela área”, mesmo antes da
emancipação político-administrativa do município. Aduz que
somente após a aprovação do Código Ambiental Municipal é que
haverá definição sobre costão rochoso
na legislação local.
1.3)
Ofício enviado pela Secretaria Municipal de Planejamento Urbano de
Búzios ao MPF
Prestando
informações requeridas, bem como fotos aerofotogramétricas do
costão rochoso, realizadas em maio de 2003, com a identificação de
todos os lotes do Loteamento Condomínio do Atlântico, que se
aproximam da área do costão – quadra E I, lotes 1 ao 29 e as
construções existentes na época. Juntou ainda arquivo digital de
fotos de cada um dos lotes do Condomínio do Atlântico,
identificando cada uma das construções, bem como aquelas que são
irregulares sobre o costão rochoso.
1.4)
Intimação nº 001952 expedida pela Secretaria Municipal de
Planejamento e Meio Ambiente.
Determinando
a paralisação da obra da Quadra EI – Lote 04 do Condomínio do
Atlântico, em 19/09/2006, por motivo de não ter licença de
construção e projeto aprovado.
1.5)
Auto de Embargo nº 000040, lavrado em 20/09/2006, em desfavor de
Philippe Meeus
Com
determinação para pagamento de multa, por não ter atendido à
intimação 001952 para paralisação da obra.
1.6)
Auto de Infração nº 000844, lavrado em 02/05/2007, em desfavor de
Philippe Meeus.
Em
virtude de estar executando obra situada em área submetida a regime
de proteção ambiental.
1.7)
Intimação nº 000675, lavrada em desfavor de Philippe Meeus, em
14/07/2007.
Determinando
a paralisação da obra por não haver licença de construção e
projeto aprovado.
2)
DOCUMENTOS DA FEEMA
2.1)
Ofício da FEEMA para o MPF
Requerendo
dilação de prazo para a realização de vistorias e outras
providências requeridas. Alega que aguarda a relação de imóveis
construídos em áreas de costões rochosos, a ser enviada pela
Prefeitura de Búzios, considerando a aprovação do Plano Diretor da
cidade. Junta cópia de ofício enviado à Prefeitura de Búzios,
solicitando informações.
2.2)
Relatório de Vistoria nº 141/2011, elaborado pelo INEA
De
acordo com o Relatório, o empreendimento não possui licença
ambiental e o empreendedor “na época da construção suprimiu
vegetação sem autorização”.
3)
DOCUMENTOS DO IBAMA
3.1)
Ofício do IBAMA para o MPF
Informando
que não emitiu laudos ou pareceres técnicos a fim de respaldar
autorizações ou licenças para construção de imóveis em costões
rochosos de Búzios. Junta ainda cópia de laudo de vistoria técnica
efetuada em 28/06/2001, a pedido do MPF, sobre as praias de Geribá,
Ferradura e Ferradurinha, especificamente no tocante às construções,
lançamentos de efluentes, existência de vegetação permanente
destruída, construções em solo legalmente não edificável, bem
como da possibilidade das construções permanecerem ou não no local
e se as servidões necessárias ao acesso do público às praias
foram respeitadas. Junta fotos demonstrando a existência de
construções sobre áreas não edificáveis nas praias de Geribá e
da Ferradura.
3.2)
Ofício do IBAMA para o MPF
Informando
que aquele órgão não concede autorização para construção de
imóveis sobre costões rochosos. Junta as informações técnicas
sobre a natureza e constituição dos costões rochosos.
3.3)
Laudo Técnico nº 034/2008, elaborado pelo IBAMA a partir de
vistorias de campo iniciadas em 28/05/2007.
Narra
o laudo, dentre outras coisas, que no período de 29 a 31/07/2008,
foram fiscalizadas as construções localizadas junto ao costão
esquerdo da Praia da Ferradura, quando foram emitidas notificações
aos proprietários das casas e pousadas para apresentarem as
autorizações dos órgãos competentes (GRPU, FEEMA e
Prefeitura) para a edificação no costão rochoso adjacente. A
diligência fiscalizatória prosseguiu no dia 01/08/2008 por mar, em
embarcação da Prefeitura municipal, para identificação
fotográfica dos imóveis que apresentam expansões de suas
edificações sobre os costões rochosos. Na ocasião, retornaram aos
imóveis e, não tendo sido apresentada pelos proprietários a
documentação solicitada, as notificações anteriores foram
consideradas como não atendidas, dando azo ao prosseguimento da
fiscalização com a identificação dos danos causados ao costão
rochoso e a tomada das providências cabíveis.
3.4)
Existência de licença ou autorização emitida pelo IBAMA
-
Não foi emitida qualquer autorização ou licença pelo Escritório
Regional do IBAMA/RJ em Cabo Frio para a construção sobre os
costões rochosos do canto esquerdo da Praia da Ferradura, assim como
não se tem notícia que a Superintendência tenha emitido tal tipo
de anuência.
3.5)
Medidas adotadas para coibir eventuais ilícitos
– Uma
vez constatadas as mencionadas práticas atentatórias contra o meio
ambiente e considerado que os costões rochosos são área de
preservação permanente, de acordo com a Constituição Estadual do
Rio de Janeiro, artigo 265, foi feita a autuação dos autores,
com base na Lei nº 9.605/98 (Crimes Ambientais), regulamentada pelo
Decreto nº 6.514/08 e as diretrizes estabelecidas pela Lei nº
7.661/88 (Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro), tendo sido para
tal ação fiscalizadora elaborado o Relatório de Fiscalização
RJ75/2008 (Anexo-6-B)
3.6)
Cópia de Notificação emitida em 31/07/2008
Em
desfavor dos proprietários dos lotes do Condomínio do Atlântico,
em cujos imóveis foram constatadas irregularidades.
3.7)
Notificação nº 538453
Emitida
na data acima mencionada em desfavor de Insólito Hotel Ltda.
3.8)
Cópia do Relatório de Fiscalização nº 00075/2008
Contendo
informação de – ante o não atendimento das notificações
anteriores - ter o IBAMA autuado “todas as construções que, de
alguma forma, estão agredindo os costões rochosos, em vista da
constatação dos ilícitos ambientais, conforme está esclarecido no
Laudo Técnico nº 34/2008, que dá respaldo a tais autuações.”
3.9)
Cópia do auto de infração nº 353327, lavrado em desfavor de
Insólito Hotel Ltda.,em 06/08/2008, no valor de R$ 35.000,00 (trinta
e cinco mil reais)
Em
virtude de “construir estabelecimento sem licença ou autorizações
dos órgãos ambientais competentes, em solo não edificável”.
3.10)
Cópia de comunicação de crime emitida pelo IBAMA em desfavor de
Insólito Hotel
Noticiando
violação aos artigos 60 e4 64 da Lei 9.605/98.
4)
DOCUMENTOS DO MPF
4.1)
Ofício enviado pela Câmara Técnica do MPF à Procuradora da
República, protocolado em 20/07/2007
A
4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF protocola ofício
contendo cópia da informação Técnica nº 176/07, a qual aborda as
questões relativas aos costões rochosos e a zonação.
5)
DOCUMENTOS DA UNIÃO FEDERAL
5.1)
Cópia de ofício enviado pela União Federal ao Juízo da Vara
Federal de São Pedro da Aldeia
Referente
a processo análogo, movido em desfavor de outro proprietário de
imóvel no Condomínio do Atlântico, informando que o lote lá
referido encontra-se quase completamente em terreno de marinha. Junta
ainda mapa do loteamento Condomínio do Atlântico.
SPU
NÃO FOI CONSULTADO
Do
exame dos autos, a Juíza verificou que inexiste qualquer autorização
formal ou mesmo consulta à SPU, exigida conforme os ditames da Lei
9.696/98, que regula a ocupação dos bens imóveis da União
Federal. Sendo a praia bem de uso comum do povo, a restrição de seu
acesso imposta pela construção do hotel, sem que para tanto o
proprietário tenha obtido qualquer ato de concessão por parte da
Administração Pública Federal nesse sentido, impede que a
coletividade exerça o uso normal daquele bem público, violando esse
direito, conforme estabelecido na legislação acima citada. O fato
de ter sido o estabelecimento dos réus parcialmente construído
sobre terreno de marinha, sem autorização da União para a sua
regular ocupação, nos termos do Decreto-Lei 9.760/46, não deixa
margem a dúvidas quanto a sua irregularidade.
CONCLUSÃO:
O
empreendimento dos réus Philippe e Insólito Hotel não foi objeto
de licenciamento junto à GRPU, IBAMA, FEEMA ou mesmo junto à
Secretaria Municipal de Planejamento e Meio Ambiente – o que
ocasionou até mesmo o embargo da obra pelo órgão municipal, em
20/09/2006, determinação essa igualmente descumprida pelos
réus Philippe e Insólito Hotel.
Assim,
ao não diligenciar para regularizar a obra pretendida junto aos
órgãos competentes, não esperando pela obtenção da licença
prévia devida, optaram por dar
início às obras da maneira que bem entenderam, ao arrepio das
normas vigentes e desconsiderando todas as ações empreendidas no
local por parte dos órgãos fiscalizadores de todas as esferas do
poder público.
Os
réus Philippe e Insólito Hotel prosseguiram com firmeza na
perpetração da descaracterização e alteração do costão rochoso
da Praia da Ferradura, com o fito único de valorizar seu
empreendimento e assim obter maiores lucros com a colocação de uma
piscina, construção de uma mureta para barramento das águas e
instalação de tubulação para alimentação da piscina, com a
utilização de cimento em diversos pontos para viabilizar a
alteração levada a cabo.
Demonstrado
assim o absoluto descaso com a questão
ambiental e com os caros princípios da preservação, da precaução
e da prevenção norteadores do moderno Direito Ambiental.
A
CONDUTA DO MUNICÍPIO DE BÚZIOS
O
que se comprova nos autos, segundo a Juíza, é que o Município
limitou-se a empreender tímidas ações fiscalizatórias que
incluíram até a lavratura de autos de infração, porém quedou-se
inerte, assistindo passivamente ao desenvolvimento da construção
irregular, sem que se tivesse utilizados dos meios coercitivos ao seu
alcance para fazer cessar a irregularidade e os prejuízos dela
advindos. Por fim, concedeu o Habite-se e a Certidão de
Lançamento da nova obra.
A
Juíza verifica ainda que, em 26/09/2011, data da
vistoria do INEA, o local ainda ostentava placa proibindo a entrada
de “pessoas estranhas” no caminho que dá acesso à praia, o que
comprova terem os réus se assenhorado do costão rochoso adjacente
aos lotes 3 e 4, como se dele fossem proprietários. (fl. 334)
Tratando-se
de bem de uso comum do povo, a autorização para sua ocupação
somente se justifica pelo interesse público. No caso, ocorreu
situação inversa, com a sobreposição do interesse particular ao
público e social, fato este que obsta a regularização da ocupação,
conforme previsto no art. 9º, II, do referido diploma. Assim, a
outorga pelo Município de Armação de Búzios de
Alvarás/autorizações para instalação de empreendimentos
comerciais nas praias constitui verdadeira usurpação de
competência, reputando-se nulos tais atos. Para a Juíza, o
Município de Búzios deve ser “igualmente responsabilizado pela
degradação ambiental verificada e pela complacência com que
encarou a questão, limitando-se a empreender tímidas ações
inibidoras que não obtiveram na prática qualquer resultado”.
E,
ao final, concedeu o Habite-se e a Certidão de Lançamento da obra,
para conferir aspecto de regularidade àquilo que nasceu irregular,
conquanto carente de qualquer autorização prévia ao seu início.
Outrossim, por se tratar de autorização municipal de uso de
área de terreno de marinha sem manifestação da União, através de
seu órgão competente – SPU -, tornam-se inválidos os atos
administrativos do Município de Armação dos Búzios no sentido de
autorizar a utilização daquele local para a finalidade que foi
concedida.