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sábado, 23 de novembro de 2019

Um especulador imobiliário "recalcitrante"


Nos autos do processo nº 0001270-88.2008.4.02.5108, que transita na 02ª Vara Federal de São Pedro da Aldeia, na qual o MPF pede a demolição de construções irregulares sobre o costão rochoso do canto esquerdo da Praia da Ferradura, a Juíza Federal Angelina de Siqueira Costa, em sua sentença, proferida em 24/10/2014, avaliou como “recalcitrante” a conduta do réu Philippe, tendo em vista que diversos autos de infração contra ele lavrados e termos de embargo foram descumpridos, o que demonstra sua postura de total descaso com a questão ambiental.

Inexiste nos autos qualquer licença ambiental concedida por órgão competente para autorizar a construção erigida sobre os lotes onde se deu a construção do Hotel Insólito”, afirma a Juíza.

Para demonstrar o “absoluto descaso com a questão ambiental” por parte do réu Philippe Meuus, a Juíza Angelina de Siqueira Costa descreve os documentos anexados ao processo administrativo nº 1.30.009.000109/2005-95, considerados por ela “dotados de relevância na análise do caso em tela”.

UM POUCO DA HISTÓRIA DO PROCESSO

O procedimento administrativo nº 1.30.009.000109/2005-95, que instrui a petição inicial da ACP nº 0001270-88.2008.4.02.5108, inicia-se a partir de representação feita ao MPF por MANOEL EDUARDO DA SILVA, mais conhecido como MARRECO, acerca de eventuais irregularidades em construções nos costões rochosos, causando danos ao meio ambiente, e possível omissão do IBAMA e da PREFEITURA MUNICIPAL DE ARMAÇÃO DOS BÚZIOS.

Os fatos apurados no processo administrativo desaguaram no ajuizamento de cinco ações civis públicas, em face dos proprietários dos lotes do Condomínio do Atlântico, responsáveis por tais construções em área de preservação permanente, levadas a cabo sem as devidas autorizações dos órgãos ambientais.

Marreco protocolou a representação em 05/10/2005, acompanhada por diversas notícias de jornal contendo também fotos. Além disso, juntou cópia de correspondência enviada ao Secretário Municipal do Meio Ambiente, narrando as irregularidades verificadas, bem como anexando mapas, croquis e informações técnicas sobre os ecossistemas dos costões rochosos. Correspondência também foi ao MPF, requerendo providências, sobre notícia veiculada em jornal local que falava sobre a “privatização” da Prainha da Ferradura e sua obstrução.

Como presidente da Associação Protetora dos Afloramentos Rochosos Litorâneos (APARLI), Marreco prestou esclarecimentos ao MPF relatando “violações ambientais e paisagísticas nos costões rochosos da Praia da Ferradura e o impedimento trazido pelas obras lá realizadas para que os pescadores da garoupa possam efetuar a pesca a partir dos costões”. A APARLI-BÚZIOS também requereu a juntada de jornal local, contendo notícia sobre o embargo interposto pela FEEMA sobre obra no canto esquerdo da Ferradura.

DOCUMENTOS DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

1) DOCUMENTOS DO MUNICÍPIO DE BÚZIOS:

1.1) Ofício do Município de Búzios (09/05/2006)
Esclarecendo ao MPF que não pode informar se emitiu ou não licenças de construção em área de costões rochosos por não ser “encontrada na literatura técnica nem nos glossários relacionados às legislações que tratam do tema, uma definição que permita delimitá-lo fisicamente”. Informa ainda que o Plano Diretor da cidade está em elaboração.

1.2) Ofício do Município de Búzios para o MPF
Informando que não constam nos registros da Secretaria Municipal de Planejamento e Urbanismo licenças ou autorizações para construção de imóveis em área de costões rochosos. Informa ainda que já existem imóveis construídos “naquela área”, mesmo antes da emancipação político-administrativa do município. Aduz que somente após a aprovação do Código Ambiental Municipal é que haverá definição sobre costão rochoso na legislação local.

1.3) Ofício enviado pela Secretaria Municipal de Planejamento Urbano de Búzios ao MPF
Prestando informações requeridas, bem como fotos aerofotogramétricas do costão rochoso, realizadas em maio de 2003, com a identificação de todos os lotes do Loteamento Condomínio do Atlântico, que se aproximam da área do costão – quadra E I, lotes 1 ao 29 e as construções existentes na época. Juntou ainda arquivo digital de fotos de cada um dos lotes do Condomínio do Atlântico, identificando cada uma das construções, bem como aquelas que são irregulares sobre o costão rochoso.

1.4) Intimação nº 001952 expedida pela Secretaria Municipal de Planejamento e Meio Ambiente.
Determinando a paralisação da obra da Quadra EI – Lote 04 do Condomínio do Atlântico, em 19/09/2006, por motivo de não ter licença de construção e projeto aprovado.

1.5) Auto de Embargo nº 000040, lavrado em 20/09/2006, em desfavor de Philippe Meeus
Com determinação para pagamento de multa, por não ter atendido à intimação 001952 para paralisação da obra.

1.6) Auto de Infração nº 000844, lavrado em 02/05/2007, em desfavor de Philippe Meeus.
Em virtude de estar executando obra situada em área submetida a regime de proteção ambiental.

1.7) Intimação nº 000675, lavrada em desfavor de Philippe Meeus, em 14/07/2007.
Determinando a paralisação da obra por não haver licença de construção e projeto aprovado.

2) DOCUMENTOS DA FEEMA

2.1) Ofício da FEEMA para o MPF
Requerendo dilação de prazo para a realização de vistorias e outras providências requeridas. Alega que aguarda a relação de imóveis construídos em áreas de costões rochosos, a ser enviada pela Prefeitura de Búzios, considerando a aprovação do Plano Diretor da cidade. Junta cópia de ofício enviado à Prefeitura de Búzios, solicitando informações.

2.2) Relatório de Vistoria nº 141/2011, elaborado pelo INEA
De acordo com o Relatório, o empreendimento não possui licença ambiental e o empreendedor “na época da construção suprimiu vegetação sem autorização”.

3) DOCUMENTOS DO IBAMA

3.1) Ofício do IBAMA para o MPF
Informando que não emitiu laudos ou pareceres técnicos a fim de respaldar autorizações ou licenças para construção de imóveis em costões rochosos de Búzios. Junta ainda cópia de laudo de vistoria técnica efetuada em 28/06/2001, a pedido do MPF, sobre as praias de Geribá, Ferradura e Ferradurinha, especificamente no tocante às construções, lançamentos de efluentes, existência de vegetação permanente destruída, construções em solo legalmente não edificável, bem como da possibilidade das construções permanecerem ou não no local e se as servidões necessárias ao acesso do público às praias foram respeitadas. Junta fotos demonstrando a existência de construções sobre áreas não edificáveis nas praias de Geribá e da Ferradura.

3.2) Ofício do IBAMA para o MPF
Informando que aquele órgão não concede autorização para construção de imóveis sobre costões rochosos. Junta as informações técnicas sobre a natureza e constituição dos costões rochosos.

3.3) Laudo Técnico nº 034/2008, elaborado pelo IBAMA a partir de vistorias de campo iniciadas em 28/05/2007.
Narra o laudo, dentre outras coisas, que no período de 29 a 31/07/2008, foram fiscalizadas as construções localizadas junto ao costão esquerdo da Praia da Ferradura, quando foram emitidas notificações aos proprietários das casas e pousadas para apresentarem as autorizações dos órgãos competentes (GRPU, FEEMA e Prefeitura) para a edificação no costão rochoso adjacente. A diligência fiscalizatória prosseguiu no dia 01/08/2008 por mar, em embarcação da Prefeitura municipal, para identificação fotográfica dos imóveis que apresentam expansões de suas edificações sobre os costões rochosos. Na ocasião, retornaram aos imóveis e, não tendo sido apresentada pelos proprietários a documentação solicitada, as notificações anteriores foram consideradas como não atendidas, dando azo ao prosseguimento da fiscalização com a identificação dos danos causados ao costão rochoso e a tomada das providências cabíveis.

3.4) Existência de licença ou autorização emitida pelo IBAMA
- Não foi emitida qualquer autorização ou licença pelo Escritório Regional do IBAMA/RJ em Cabo Frio para a construção sobre os costões rochosos do canto esquerdo da Praia da Ferradura, assim como não se tem notícia que a Superintendência tenha emitido tal tipo de anuência.

3.5) Medidas adotadas para coibir eventuais ilícitos
Uma vez constatadas as mencionadas práticas atentatórias contra o meio ambiente e considerado que os costões rochosos são área de preservação permanente, de acordo com a Constituição Estadual do Rio de Janeiro, artigo 265, foi feita a autuação dos autores, com base na Lei nº 9.605/98 (Crimes Ambientais), regulamentada pelo Decreto nº 6.514/08 e as diretrizes estabelecidas pela Lei nº 7.661/88 (Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro), tendo sido para tal ação fiscalizadora elaborado o Relatório de Fiscalização RJ75/2008 (Anexo-6-B)

3.6) Cópia de Notificação emitida em 31/07/2008
Em desfavor dos proprietários dos lotes do Condomínio do Atlântico, em cujos imóveis foram constatadas irregularidades.

3.7) Notificação nº 538453
Emitida na data acima mencionada em desfavor de Insólito Hotel Ltda.

3.8) Cópia do Relatório de Fiscalização nº 00075/2008
Contendo informação de – ante o não atendimento das notificações anteriores - ter o IBAMA autuado “todas as construções que, de alguma forma, estão agredindo os costões rochosos, em vista da constatação dos ilícitos ambientais, conforme está esclarecido no Laudo Técnico nº 34/2008, que dá respaldo a tais autuações.”

3.9) Cópia do auto de infração nº 353327, lavrado em desfavor de Insólito Hotel Ltda.,em 06/08/2008, no valor de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais)
Em virtude de “construir estabelecimento sem licença ou autorizações dos órgãos ambientais competentes, em solo não edificável”.

3.10) Cópia de comunicação de crime emitida pelo IBAMA em desfavor de Insólito Hotel
Noticiando violação aos artigos 60 e4 64 da Lei 9.605/98.

4) DOCUMENTOS DO MPF

4.1) Ofício enviado pela Câmara Técnica do MPF à Procuradora da República, protocolado em 20/07/2007
A 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF protocola ofício contendo cópia da informação Técnica nº 176/07, a qual aborda as questões relativas aos costões rochosos e a zonação.

5) DOCUMENTOS DA UNIÃO FEDERAL

5.1) Cópia de ofício enviado pela União Federal ao Juízo da Vara Federal de São Pedro da Aldeia
Referente a processo análogo, movido em desfavor de outro proprietário de imóvel no Condomínio do Atlântico, informando que o lote lá referido encontra-se quase completamente em terreno de marinha. Junta ainda mapa do loteamento Condomínio do Atlântico.

SPU NÃO FOI CONSULTADO
Do exame dos autos, a Juíza verificou que inexiste qualquer autorização formal ou mesmo consulta à SPU, exigida conforme os ditames da Lei 9.696/98, que regula a ocupação dos bens imóveis da União Federal. Sendo a praia bem de uso comum do povo, a restrição de seu acesso imposta pela construção do hotel, sem que para tanto o proprietário tenha obtido qualquer ato de concessão por parte da Administração Pública Federal nesse sentido, impede que a coletividade exerça o uso normal daquele bem público, violando esse direito, conforme estabelecido na legislação acima citada. O fato de ter sido o estabelecimento dos réus parcialmente construído sobre terreno de marinha, sem autorização da União para a sua regular ocupação, nos termos do Decreto-Lei 9.760/46, não deixa margem a dúvidas quanto a sua irregularidade.

CONCLUSÃO:

O empreendimento dos réus Philippe e Insólito Hotel não foi objeto de licenciamento junto à GRPU, IBAMA, FEEMA ou mesmo junto à Secretaria Municipal de Planejamento e Meio Ambiente – o que ocasionou até mesmo o embargo da obra pelo órgão municipal, em 20/09/2006, determinação essa igualmente descumprida pelos réus Philippe e Insólito Hotel.

Assim, ao não diligenciar para regularizar a obra pretendida junto aos órgãos competentes, não esperando pela obtenção da licença prévia devida, optaram por dar início às obras da maneira que bem entenderam, ao arrepio das normas vigentes e desconsiderando todas as ações empreendidas no local por parte dos órgãos fiscalizadores de todas as esferas do poder público.

Os réus Philippe e Insólito Hotel prosseguiram com firmeza na perpetração da descaracterização e alteração do costão rochoso da Praia da Ferradura, com o fito único de valorizar seu empreendimento e assim obter maiores lucros com a colocação de uma piscina, construção de uma mureta para barramento das águas e instalação de tubulação para alimentação da piscina, com a utilização de cimento em diversos pontos para viabilizar a alteração levada a cabo.

Demonstrado assim o absoluto descaso com a questão ambiental e com os caros princípios da preservação, da precaução e da prevenção norteadores do moderno Direito Ambiental.

A CONDUTA DO MUNICÍPIO DE BÚZIOS
O que se comprova nos autos, segundo a Juíza, é que o Município limitou-se a empreender tímidas ações fiscalizatórias que incluíram até a lavratura de autos de infração, porém quedou-se inerte, assistindo passivamente ao desenvolvimento da construção irregular, sem que se tivesse utilizados dos meios coercitivos ao seu alcance para fazer cessar a irregularidade e os prejuízos dela advindos. Por fim, concedeu o Habite-se e a Certidão de Lançamento da nova obra.

A Juíza verifica ainda que, em 26/09/2011, data da vistoria do INEA, o local ainda ostentava placa proibindo a entrada de “pessoas estranhas” no caminho que dá acesso à praia, o que comprova terem os réus se assenhorado do costão rochoso adjacente aos lotes 3 e 4, como se dele fossem proprietários. (fl. 334)

Tratando-se de bem de uso comum do povo, a autorização para sua ocupação somente se justifica pelo interesse público. No caso, ocorreu situação inversa, com a sobreposição do interesse particular ao público e social, fato este que obsta a regularização da ocupação, conforme previsto no art. 9º, II, do referido diploma. Assim, a outorga pelo Município de Armação de Búzios de Alvarás/autorizações para instalação de empreendimentos comerciais nas praias constitui verdadeira usurpação de competência, reputando-se nulos tais atos. Para a Juíza, o Município de Búzios deve ser “igualmente responsabilizado pela degradação ambiental verificada e pela complacência com que encarou a questão, limitando-se a empreender tímidas ações inibidoras que não obtiveram na prática qualquer resultado”.

E, ao final, concedeu o Habite-se e a Certidão de Lançamento da obra, para conferir aspecto de regularidade àquilo que nasceu irregular, conquanto carente de qualquer autorização prévia ao seu início. Outrossim, por se tratar de autorização municipal de uso de área de terreno de marinha sem manifestação da União, através de seu órgão competente – SPU -, tornam-se inválidos os atos administrativos do Município de Armação dos Búzios no sentido de autorizar a utilização daquele local para a finalidade que foi concedida.