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“Olympia” (1863), de Édouard Manet, foto Wikipedia |
"Pela
primeira vez desde que foi fundado, há 70 anos, o Museu de Arte de
São Paulo (Masp) decidiu vetar a presença de menores de 18 anos,
ainda que acompanhados dos pais, em uma exposição de arte. A mostra
tem como tema “Histórias da sexualidade”.
Em
nota, o Masp busca justificar essa proibição, a que
eufemisticamente chama de “autoclassificação”, com base num
suposto balanceamento entre o princípio da liberdade de expressão e
o princípio da proteção prioritária da criança e do adolescente.
Afirma que seguiu os critérios contidos no “Guia Prático de
Classificação Indicativa do Ministério da Justiça”.
A
medida veio na esteira de episódios recentes de protestos raivosos,
agressivos e até violentos em relação à exposição “Queermuseu”,
no espaço Santander Cultural, em Porto Alegre, e à performance “La
Bête”, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo.
Parece
não haver dúvida de que a real motivação para a restrição
autoimposta pelo Masp não foi a vontade de se ajustar à “regulação
vigente”, mas o temor de que viesse a ser alvo de protestos e
reações semelhantes.
Esse
ato de autocensura deve ser motivo de preocupação.
Em
primeiro lugar, porque busca uma justificativa jurídica que não tem
amparo na Constituição Federal. Com o fim da ditadura, a
Constituição Federal de 1988 assumiu, de forma enfática, o
compromisso de garantir a liberdade de expressão em geral (artigo
5º, IV), e da liberdade artística em especial (artigo 5º, IX),
independentemente de censura ou licença. Essas liberdades, é claro,
têm limites, que devem ser buscados no próprio texto
constitucional.
Mas
a classificação indicativa, invocada pelo Masp como forma de
proteção da criança e do adolescente, é prevista na Constituição
(artigo 21, XVI) exclusivamente para as “diversões públicas” e
os programas de rádio e televisão. Essa classificação, que é
meramente indicativa, não é aplicável a museus ou exposições de
arte, que não se inserem no conceito de “diversões públicas”.
Para
além da questão jurídica, essa autocensura diminui a importância
do papel dos museus, de desafiar o público em geral, em especial os
mais jovens, com novas e diferentes perspectivas e o de estimular o
debate e o entendimento sobre temas controvertidos, incluída a
sexualidade.
Os
museus sempre constituíram um locus privilegiado para a
livre manifestação artística. Obras consideradas chocantes e
obscenas no passado, como “O Jardim das Delícias Terrenas”
(1504), de Hieronymus Bosch; “A origem do mundo” (1866), de
Gustave Courbet; e “Olympia” (1863), de Édouard Manet, hoje não
chocam mais e são apreciadas como ícones da História da Arte.
O
receio é o de que esse tipo de autocensura seja um passo no sentido
da “naturalização” da ideia de museu como espaço de liberdade
apenas para a arte considerada “comportada”, que não fira
sensibilidades.
É
indiscutível que a liberdade de expressão artística, como toda e
qualquer forma de liberdade, tem limites e traz responsabilidades.
Mas esses limites e essas responsabilidades são traçados pela
própria Constituição Federal, não pela opinião de um grupo de
pessoas, mesmo que constituam maioria dentro da sociedade.
A
aplicação de um princípio constitucional não pode depender do que
pense a maioria da população em uma determinada quadra da história.
É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal, guardião final
dos princípios constitucionais, exerce um papel contramajoritário,
de proteger os direitos das minorias contra as maiorias eventuais.
A
história mostra que os costumes sociais mudam ao longo do tempo.
Essas mudanças, geralmente, não se dão sem resistências e
conflitos, porque, convenhamos, não é fácil aceitar alterações
em nossa visão de mundo.
Daí
a importância em não transigir com questões de princípio. Uma
democracia se mede, entre outras coisas, pela firmeza com que são
aplicados os princípios constitucionais, ainda que isso possa
contrariar a opinião social predominante".
André
Andrade
desembargador