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Roberto Jefferson Foto: site JotaInfo |
1.
O recorrente tema de que o STF está usurpando poderes
A
cada vez que o Supremo Tribunal Federal responde ao Contempt
of Court (ataques-desprezos
à corte), surge ou se reacende a polêmica acerca da
legalidade-constitucionalidade dos atos do Tribunal.
Agora,
com a prisão de Roberto Jefferson, tenho feito debates nas mídias e
contestado, como sempre, de forma lhana, as posições em contrário
de setores que acenam com o garantismo para sustentar suas críticas
à Suprema Corte.
Tenho
argumentado que garantismo não é textualismo. Aliás, textualismo é
positivismo "paleolítico" (a expressão é de Ferrajoli).
Logo, é para além do textualismo que vamos.
O
que é cumprir a CF ou a lei? Se uma lei diz que é proibido levar
cães na plataforma do trem, um textualista dirá que é facultado
levar ursos e jacarés. E proibir o cão-guia do cego. Esse é um
problema de um certo tipo de positivismo, eivado de criterialismos,
como diria Dworkin. Aliás, a dogmática sustentadora desse olhar é
criterialista, porque ignora o direito e constrói discursos
convencionalistas. Respondendo ao caso dos cães: a interpretação
correta é: onde está escrito cães, leia-se animais perigosos. O
textualismo pode ser terrível, pois não?
A
discussão do papel do STF é uma questão que envolve o conceito de
Estado Democrático de Direito. Que sustenta a Constituição. Que
depende do Tribunal Constitucional.
Considero,
ademais, incorreto dizer que a atitude do STF é "atípica".
Atípicos são os ataques do Presidente ao STF e ao TSE. Atípico é
Jefferson.
Repito.
O princípio do Estado Democrático de Direito é o que assegura a
Constituição. Não existe Constituição sem o que vem antes:
a democracia. E quem assegura a Constituição é o Supremo Tribunal
Federal.
A
solução encontrada pelo STF é legítima. Ele pode, sim, usar o
Regimento Interno. Na verdade, tudo começou com a defesa do STF
contra os ataques feitos à Corte; e agora a defesa é do próprio
regime democrático.
O
'legalismo' por si mesmo e em abstrato funciona como bandeira.
Bonito. Mas, porque em abstrato, se levado às últimas consequências
em circunstâncias concretas, pode
acabar por se voltar contra os princípios que o justificam em
primeiro lugar. Princípios
sem os quais a própria ideia de legalidade não faz sentido.
2.
Não é curioso que golpistas reivindiquem a legalidade?
Sim,
reivindicam quando interessa. Pois é. O Direito deve dar conta de se
proteger daqueles que fragilizam suas condições de possibilidade —
não pode ser arma na mão de quem faz arma com a mão para criar,
com o perdão da expressão, uma patifaria institucional.
Instituições
são como limpadores de para-brisa. Funcionam bem se forem colocados
do lado de fora do carro e em dia de chuva. Bom, chuva já temos
todos os dias. As decisões do STF são passos importantes para
colocar o limpador para funcionar.
3.
O "perigo do precedente"? Como assim?
Diz-se
também que a prisão de Jefferson poderá no futuro ser usada contra
democratas e quejandos. E que isso geraria precedentes. Ora, vamos
lá. Precedentes (jurisprudência) bem lidos devem sempre levar em
conta o distinguishing, isto é, o ponto que diferencia uma coisa de
outra coisa. A menos que os juristas brasileiros não tenham
aprendido o conceito de precedente.
O
precedente desse caso do Inquérito das Fake News serve para casos
de Contempt
of Court e
o que a isso está vinculado. Como não há ninguém acima do STF,
ficaria a pergunta: quem defende o STF quando atacado?
Curiosamente,
essa é a pergunta que segue sem resposta por parte de determinados
setores da crítica jurídica que correm o risco de defender uma
espécie de direito fundamental de liquidar com a própria
democracia. (Spoiler: não, não há um direito fundamental a pregar
golpes e extinção da Suprema Corte, sobretudo quando se trata de
patifaria com aquilo que garante... direitos fundamentais). Não,
Jefferson nem ninguém têm o direito fundamental de pregar a
extinção dos próprios direitos fundamentais. A democracia proíbe
discursos suicidas.
Daí
que só uma leitura enviesada — e bem enviesada — desse
precedente (prisão de Jefferson ou do deputado ou o Inquérito das
fake news) é que poderá, no futuro, causar problemas. Porque o
precedente serve quando as circunstâncias fáticas são as mesmas.
Se não for esse o caso, será um aproveitamento oportunista do que
se diz ser um precedente. E aí a culpa é do Supremo, que precisa se
defender no entremeio de um tiroteio antidemocrático?
4.
E desde quando aqueles que querem acabar com a democracia precisam de
"precedentes"?
E
há ainda um outro aspecto aqui que deve ser encarado de frente:
desde quando aqueles que estão dispostos a avacalhar com a
democracia precisam de precedente(s) para alguma ou qualquer coisa?
"Ah, cuidado, isso gera um precedente". É mesmo? Quem tem
má-fé não precisa de "precedente". Simples assim.
Imagine
um governo despótico que quer instrumentalizar o Judiciário para um
fim iníquo. Seria um tanto cínico culpar o "precedente"
do ministro Alexandre, como se isso fosse causador de eventuais
maus-usos do Supremo em sua função de Suprema Corte.
De
todo modo, o Parlamento poderia também dar uma resposta aos ataques
do Presidente à democracia e ao processo eleitoral. Mas não o faz.
O STF age como razão última.
5.
A comunidade jurídica e o quadro de Van Gogh
Sendo
mais claro: o jurista não pode se comportar como o sujeito que,
diante da irrupção do Vesúvio, fica
arrumando um quadro valioso na parede. Insisto
na pergunta, que direciono aos críticos da decisão do Supremo
Tribunal (esta da prisão de Jefferson, a do dep. Daniel, por
exemplo): o
que esperamos que aconteça quando ninguém faz nada? No
"diálogo institucional" que alguns parecem esperar, só há
o silêncio.
Outra
crítica se relaciona à lava jato e que o STF estaria agindo de
forma arbitrária como a citada operação. O STF estaria agindo
"tipo Moro". E que eu, na defesa da atuação do STF,
estaria incorrendo em contradição.
Essa
pergunta já foi indiretamente respondida nas linhas acima. O que
está em jogo, aqui, e não há exagero nisso, é
a democracia e o Estado de Direito. É
a Constituição, o Supremo, o sistema eleitoral e a própria
república sob ataque. Ou não é isto que estamos vendo todos os
dias?
Não
há nisso um paralelo equivalente com um juiz incompetente e parcial
grampeando advogados, palpitando em operações policiais, indicando
testemunhas à acusação, despachando o que não se havia pedido que
se despachasse.
De
um lado, você tinha a tese de que "os fins justificam os
meios". O
que está em jogo agora é a garantia de que haja meios. Esse
é o ponto. De mais a mais, o Inquérito nada mais é do que uma
decorrência natural da supervisão judicial nos processos de
competência originária do Supremo, ainda mais quando as vítimas
são todos os seus ministros.
Em
uma democracia, aquilo que se pode achar juridicamente errado tem de
ser resolvido no âmbito da juridicidade. O
Direito resolve o que é do Direito.
Se há dispositivos do Regimento Interno e do CPP incompatíveis com
a Constituição, devem ser assim declarados no âmbito próprio.
Lembremos: vigência e validade. Aula 1 de introdução ao Direito.
Aula 2, porém: isso tem de ser declarado pelo órgão competente. De
ofício ou por provocação. No caso, há dispositivos vigentes
(ainda) válidos que sustentam os atos do STF, utilizados em nítido
estado de contempt of court. Positivistas brasileiros até a página
2, convenientemente, por vezes se esquecem disso.
6.
As lições da história
Numa
palavra final e sempre com o respeito e delicadeza com que escrevo
sobre esses temas, sempre é bom lembrar das lições da história.
Dois livros podem ajudar: Os
juristas do Horror,
de Ingo Müller, em que mostra, por exemplo, como a leniência do
judiciário para com Hitler no julgamento do golpe de 1923 (Putsch da
Cervejaria) acabou gerando frutos amargos, amarguíssimos, trágicos.
Weimar precisa se proteger.
O
segundo livro é de Bernd Rüthers, que mostra que, tivesse a
doutrina realizado os devidos constrangimentos (limitações), talvez
o autoritarismo dos anos 30 na Alemanha não tivesse tido o sucesso
que teve, cujo efeitos todos conhecemos. Por isso o seu livro, em
tradução livre, tem o nome de Uma
Interpretação Não Limitada (ou,
como prefiro, Não Constrangida).
Eis
a questão. Se acharmos que ameaçar, ofender, incitar etc. etc. (há
um código penal quase por inteiro, um verdadeiro cardápio de
ilícitos) as instituições como STF e TSE, além da honra de seus
ministros, é coisa "da democracia", então talvez tenhamos
que reler alguns capítulos da história.
Por
vezes o garantismo (ou algo que se faça em seu nome) vira um fetiche
e trata as instituições como guardas-noturnos. Com isso, fragiliza
os próprios fundamentos de um Rule of Law no sentido estrito do
tema.
Por
isso, a pergunta final: Quem garante as garantias quando as
instituições que as garantem não são garantidas?
Lenio
Luiz Streck
Lenio
Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em
Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados
Associados: www.streckadvogados.com.br.
Fonte: "CONJUR"