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Prefeito de Búzios Henrique Gomes e a presidente da Associação dos Remanescentes Quilombolas de Baía Formosa Beth Fernandes |
Ninguém
esperava, mas ela interrompeu a reunião que acontecia em Búzios
entre Ministério
Público Federal,
o proprietário de terras da fazenda
Porto Velho
e o representante do Aretê,
um grande empreendimento interessado nas terras. Discutiam questões
ambientais relativas à ocupação da área, e Beth Fernandes chegou
de surpresa para ampliar a pauta.
Naquele
dia, pela primeira vez o MPF tomou conhecimento dos quilombolas
de Baia Formosa e de sua triste e violenta história de
expulsão das terras ocupadas há gerações, por seus familiares.
– É
uma situação que a meu ver é um absurdo, porque os quilombolas são
os verdadeiros proprietários da terra. É isso que entende a
Constituição – afirma o procurador
do MPF, Leandro Mitidieri,
se referindo ao que aconteceu na Baía Formosa na década de setenta.
Desse
jeito, puxada por Beth, uma quilombola que queria ver o pai pisar
novamente na terra de seus ancestrais, começou a luta que geraria
uma decisão pioneira no Brasil. Na última quinta-feira, dia 25,
Francisco da Cunha Bueno, filho de Henrique, o
fazendeiro que nos anos 70 expulsou cerca de sessenta famílias
quilombolas de suas terras, devolveu a eles seu
direito ancestral. Após intensas negociações, entregou 800
mil metros de área da Fazenda Porto Velho para a Associação dos
Remanescentes Quilombolas de Baía Formosa, reparando um
episódio cruel do passado, inserindo um novo capítulo na
história do Brasil, da cidade de Búzios e seus moradores.
O
acordo, encabeçado pelo procurador do MPF Leandro Mitidieri, o
proprietário Francisco da Cunha Bueno, o representante do
empreendimento Aretê, Paulo Pizão, o procurador da Advocacia Geral
da União, que atua pelo Incra, Diogo Tristão e a Associação dos
Remanescentes Quilombolas de Baia Formosa, na pessoa de Beth
Fernandes, foi concluído durante uma grande assembleia no quilombo,
com presença maciça da comunidade. O acordo permite o retorno dos
quilombolas à sua área. Hoje o grupo soma aproximadamente 120
famílias que receberão o direito ao território
coletivo.
– Eu
disse que um dia eu ia apresentar pra você o pessoal, os
quilombolas. E esse grupo que está aí, são todos das famílias
expulsas – disse Beth se dirigindo ao fazendeiro
Francisco,
mostrando a comunidade presente – Queria muito que meu pai
estivesse aqui hoje para viver este momento com a gente. Nós
começamos a perder nossos velhinhos todos e é com muita emoção
que vejo o Seu
Nelson
participando conosco desse dia. Queria muito que todos pudessem
novamente andar na terra que era deles, pisar nesta terra –
concluiu Beth.
Representante
mais antigo das famílias presentes, Seu Nelson Pedro
sorria e apertava com satisfação a mão do fazendeiro Francisco.
– A
minha família toda é daqui. A minha avó Gregória é daqui. Tenho
vontade de voltar ao meu local, eu tenho vontade de vir pra cá.
Saímos da nossa terra, com licença da expressão, escorraçados…
a gente plantava laranja, aipim, tinha abóbora, tinha de tudo o que
dá na terra. Tinha casa de farinha. Seu pai tirou a gente, mas você
tem bom coração. Eu estou muito satisfeito com o acordo de hoje.
Quero criar galinha, plantar…
Sensibilizado,
Francisco convidou toda a comunidade quilombola para se reunir já
neste início de agosto, e juntos, entrarem nas terras do quilombo.
– Vamos
combinar uma coisa aqui. Seu Nelson, Seu Zé, as pessoas que se
sentiram sofridas aqui. A área já é de vocês. Semana que vem a
gente entra, faz uma oração junto, quero entrar de mãos dadas com
o senhor, Seu Nélson. A área já é de vocês! – ressaltou.
Prefeitura
de Búzios apoia Quilombo de Baía Formosa
Destacando
a importância deste momento de reparação histórica,
que já é um marco para Búzios e para o Brasil, o prefeito em
exercício Henrique Gomes, acompanhou a conclusão do acordo. Ele
falou de sua origem na roça do interior do estado, onde vivenciou a
expulsão do homem do campo e afirmou ser uma grande vitória o
acordo conseguido pelos quilombolas. Henrique parabenizou todos os
envolvidos nas negociações, destacou a atitude do fazendeiro em
reconhecer o direito das famílias e reforçou seu total apoio ao
Quilombo de Baía Formosa.
Incra
acata acordo de doação, reconhece território quilombola e inicia
processo de regularização fundiária
Satisfeito
com o sucesso da conclusão do acordo que garante a doação de
terras aos quilombolas, Diogo Tristão, procurador da Advocacia Geral
da União, e que atua pelo Incra, explica que doação é do
proprietário da fazenda diretamente para a associação quilombola.
De particular para particular, e que o Incra acata esta decisão e
reconhece a área como território coletivo quilombola.
– Esta
decisão é pioneira no país. Podemos exportar este bom exemplo do
Quilombo de Baía
Formosa –
afirma. Diogo explica também que a doação concluída agora, não
inclui toda a área ocupada pelo quilombo de Baia Formosa.
Locais vizinhos à fazenda Porto Velho da família Cunha Bueno,
conhecidos como Núcleo
Manoel e Cezarina, Núcleo Zebina, e o Poço da Pedra,
também são áreas quilombolas, que já estão sendo cadastradas
pelo Incra para o processo de regularização fundiária e titulação.
História
do Brasil
De
acordo com a antropóloga do Incra, Camila Moreira, a ocupação das
terras de Baía Formosa pelas famílias, data de 1850.
A área em questão era parte da imensa fazenda Campos Novos, que foi
sendo desmembrada no século dezenove, se transformando em várias
fazendas distintas, com donos diferentes.
– Passaram
diferentes proprietários, a fazenda mudava de dono, mas as famílias
permaneciam morando e trabalhando na terra, sempre fazendo o acordo
de colonato ou arrendamento, como era chamado na época. As pessoas
moravam na fazenda e em troca trabalhavam para o proprietário. Em
1970 esses
acordos são rompidos por uma modernização do campo,
e valorização da terra, e em Búzios, como em todo o Brasil,
acontece um processo
de expulsões dessas famílias.
Depoimentos:
Rejane
Maria de Oliveira, da Coordenação Nacional das Comunidades
Quilombolas
– Estou
aqui junto com a comunidade de Baía Formosa tomar posse de mais uma
vitória das comunidades quilombolas do Brasil. É um exemplo, a
comunidade passou por diversas dificuldades e hoje está tomando
posse daquilo que é de direito dela, e foi tomado lá atrás.
Acreditamos na mudança, no poder de uma comunidade tradicional. Sou
do quilombo da
Maria Joaquina
onde hoje também lutamos para ter direito ao local onde nossos
antepassados foram escravizados. Já estamos adiantando o nosso RTID
– relatório técnico de identificação e delimitação,
uma peça técnica do Incra que fundamenta o processo de
regularização. Acreditamos que em cerca de três anos a nossa
comunidade consiga a sua área original, conforme nos garante o
decreto do governo federal sobre a questão quilombola.
Lúcia
Maria, quilombola de Baía Formosa
– Da
minha família, a que chegou primeiro em Baia Formosa foi a minha
bisavó, Marta. A
gente saiu daqui porque a fazenda despejou todo mundo.
Começaram afrontando os moradores, até boi no quintal da gente. A
gente dormia com boi rodando a casa, as paredes. As coisas da roça,
boi comeu tudo, pisava por cima… O padrasto do meu marido tinha
plantação de laranja, teve que deixar tudo aí pra boi comer,
abandonar tudo. Cada um foi morar num lugar, Jardim Peró, Jardim
Esperança…
Somos
nascidos e criados aqui. Tinha casa de farinha, aipim pra comer
bastante, no brejo a gente pescava peixe, os que sabiam fazer cesto
iam pro mato tirar cipó, uns trabalhavam na roça… então era
aquela fartura! Tinha laranja, aipim, batata, abacaxi, feijão…a
gente nem sabia o que era comprar pão, era biju da casa de farinha.
Paulo
Pizão, representante do empreendimento Aretê
– Acompanho
o projeto há 11 anos. A comunidade quilombola está conseguindo um
resultado de milhões, porque esta terra avaliada no mercado, vale
milhões. Destaco o trabalho da Beth, incansável, do proprietário
em ir entendendo e cedendo esta área enorme. Eu nunca imaginei que
isso pudesse acontecer. E destaco o Dr. Leandro do MPF, que soube
conduzir muito bem esta questão, atento ao direito histórico da
população. O acordo de hoje é um marco
cidadão para o país