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INTRODUÇÃO
João
Cezar Castro Rocha, professor titular de literatura comparada da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), vem se dedicando a
entender o que ele chama de guerra cultural bolsonarista. O resultado
de sua pesquisa é o livro “Guerra
cultural e retórica do ódio: crônicas do Brasil”,
que deve ser lançado no fim de junho deste ano pela editora
Caminhos.
Em
seu livro, ele busca a especificidade da guerra cultural empregada
pela militância bolsonarista no Brasil, da qual fazem parte alguns
dos influenciadores alvos de mandados de busca e apreensão da
Polícia Federal no chamado inquérito das fake news.
Ele
deu longa entrevista à Agência Pública, da qual fiz este
apanhado.
TRIPÉ
FUNDAMENTAL DO BOLSONARISMO
Para
ele, o tripé fundamental que alimenta a mentalidade desses grupos é
constituído pelo:
1) discurso
revanchista e revisionista sobre o golpe de 1964, que formou o
projeto Orvil, o Livro Secreto do Exército;
2)
a Doutrina de Segurança Nacional, que traz a ideia do inimigo
interno que deve ser eliminado;
3)
e a popularização do que ele chama de retórica do ódio, promovida
pelo escritor Olavo de Carvalho.
A
ESPECIFICIDADE DA GUERRA CULTURAL BOLSONARISTA
A
guerra
cultural bolsonarista é o eixo do governo. Os pilares fundamentais
do governo bolsonaro não são, como ele pensava, as políticas
anticorrupção do Sergio Moro e a agenda liberal econômica do Paulo
Guedes. O professor João Cezar já afirmava, em março de 2019, que
o eixo do governo como um todo é a guerra cultural bolsonarista.
LIVRO
BRASIL NUNCA MAIS
Segundo o professor, a mentalidade de Jair Messias Bolsonaro foi formada pelo Exército
brasileiro, mas moldada numa linha muito particular do Exército, que
é marcada pelo ressentimento a partir da repercussão de um
autêntico livro-monumento lançado em 1985 que é o livro "Brasil:
nunca mais".
Esse é um livro particularmente importante porque denunciou as
torturas, as arbitrariedades e desaparecimento de corpos da ditadura
militar de uma forma incontestável.
MENTALIDADE
REVISIONISTA E REVANCHISTA DO EXÉRCITO
O livro, prossegue João Cezar, ajudou a consagrar, no período da redemocratização, uma imagem das Forças Armadas associada à repressão, à tortura e à morte. Isso marcou muito uma geração do Exército brasileiro que, por isso, sempre teve um projeto revanchista, baseado num processo revisionista. É por isso que na mentalidade bolsonarista nega-se a existência de tortura, nega-se que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos piores torturadores da história da humanidade, tenha torturado.
Então forma-se aí uma mentalidade revisionista e revanchista no Exército porque considera que os militares venceram a batalha, no golpe de 1964, mas perderam a guerra, a guerra pela opinião pública.
O
PROJETO OVRIL
O
Exército resolveu então devolver na mesma moeda a denúncia feita pela esquerda no
livro “Brasil: nunca mais”. De 1986 a 1989, sob a liderança do
então ministro do Exército do José Sarney, o Leônidas Pires
Gonçalves, os militares compilaram documentação, sobretudo de um
órgão de repressão, o CIE (Centro de Informações do Exército),
privilegiando o que consideraram ser os crimes da luta armada no
Brasil.
Os
militares formaram então o projeto
Orvil (livro
ao contrário, coisa de militar). É literalmente o “Brasil:
nunca mais” de
cabeça pra baixo. Não são mais os crimes da ditadura, mas sim os
da luta armada. É uma lista longa de grupos armados, dos desmontes
desses grupos e dos crimes que os militares consideram que eles
cometeram.
TENTATIVAS
DE TOMADA DO PODER PELA ESQUERDA BRASILEIRA, SEGUNDO O ORVIL
Segundo
o Orvil, houve quatro tentativas de tomada de poder. Eles estabelecem uma cronologia para a
história republicana que é puro delírio, de acordo com João, mas justifica plenamente
a mentalidade bolsonarista.
A
história republicana brasileira, desde 1922, para os bolsonaristas,
é uma tentativa constante de tomadas de poder pelos comunistas para
criar no Brasil uma ditadura do proletariado que, dadas as dimensões
continentais, tornariam o Brasil uma China tropical.
1)
De 1922, com a criação do Partido Comunista no Brasil, a 1954, com
a ebulição política após o suicídio de Getúlio Vargas;
2)
A radicalização política que houve entre 1954 e 1964, com as Ligas
Camponesas do Francisco Julião, a retórica radical do Brizola, o
discurso de Luís Carlos Prestes no Pacaembu às vésperas do golpe
de 1964;
3)
Entre 1964 e 1974, com a luta armada no Brasil, a guerrilha do
Araguaia.
4)
A infiltração das instituições, sobretudo de cultura, para moldar
uma mentalidade diversa que seria propícia ao advento do comunismo
que viria, não pela luta armada, mas pelas eleições.
Esta,
para eles, é a mais perigosa de todas, diz o professor. Quando eles dizem que o
Brasil está virando comunista, como é possível imaginar isso? Como
imaginar que os governos petistas eram comunistas? É um
delírio. É essa a matriz narrativa do Orvil.
A
DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL
Segundo o professor João Cezar, se
você aceita essa narrativa, o que decorre é um segundo ponto: a
Doutrina de Segurança Nacional. Se, de 1922 até hoje, há a
tentativa de tomada do poder, é preciso que haja uma contrapartida
de defesa, a Doutrina de Segurança Nacional. O direito público
internacional prevê que quando uma nação é atacada por outra nação, ela tem todo o direito (legítima defesa) de usar os
meios necessários para repelir a agressão, ainda que para fazê-lo
seja necessária a eliminação do inimigo externo.
A
Doutrina de Segurança Nacional Brasileira adaptou essa ideia ao
ambiente interno, de que o inimigo externo deve ser eliminado para a
eliminação do inimigo interno, que é o subversivo comunista. Como
o subversivo comunista na narrativa do Orvil está a serviço do
movimento comunista internacional, ele é em alguma medida externo e,
portanto, uma vez identificado, ele deve ser eliminado.
Em
tempos democráticos, como não pode eliminar fisicamente os adversários, a
militância virtual bolsonarista realiza massacres de reputação com
uma violência e virulência inéditas no Brasil. A guerra cultural
bolsonarista inventa inimigos em série e realiza rituais expiatórios
de forma impressionante (ver Gustavo Bebianno, o general Santos
Cruz, o próprio Mourão, a Joice Hasselmann, e agora com o Moro). De
uma hora para outra há uma inversão completa na caracterização do
personagem, e a destruição simbólica que eles sofrem é um
equivalente de uma eliminação do ponto de vista simbólico e
individual.
Agora,
na narrativa do Orvil, a quarta tentativa de tomada de poder ocorreu
pela tentativa de infiltração nas instituições, sobretudo culturais: imprensa, arte e universidade. Como estas instituições são
as que pretendem impor o comunismo no Brasil, todas as ações do
governo são no sentido de destruí-las.
A DESTRUIÇÃO SISTEMÁTICA DAS INSTITUIÇÕES
A DESTRUIÇÃO SISTEMÁTICA DAS INSTITUIÇÕES
Essa interpretação da Doutrina de Segurança Nacional leva necessariamente à destruição sistemática das instituições. Para
destruir a Fundação Palmares você a entrega a uma pessoa que nega
a existência do racismo no Brasil e que sugere que o Dia da
Consciência Negra seja abolido para a criação do dia da
Consciência Humana. Para destruir o Iphan, um dos órgãos mais
antigos e longevos da precária estrutura de cultura no Brasil, você
o entrega para uma blogueira que se define como “turismóloga”. Para destruir a Fundação Casa de Rui Barbosa, que
armazena manuscritos de Clarice Lispector, de Manuel Bandeira, de
Otto Maria Carpeaux, de João Cabral de Melo Neto, da nata da
literatura brasileira, você o entrega para uma roteirista da TV
Record, a Letícia Dornelles, que não tem qualificação mínima
legal para exercer o cargo. Para destruir o Capes (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) você corta 6 mil
bolsas de pós-graduação na calada da noite. Para destruir o CNPQ você lança um edital de iniciação científica e retira do edital
a área de humanidades.
Essa
é a a narrativa do Orvil. Todas essas instituições foram infiltradas por
comunistas. Como não podem eliminar os professores fisicamente, eles
partem para destruir a universidade. Destruindo a universidade,
eliminam os professores, pelo menos do ponto vista profissional.
A
GUERRA CULTURAL BOLSONARISTA
A
função precípua da guerra cultural bolsonarista não é a
imposição de valores deles; não há valores, só há destruição
sistemática das instituições. O professor pede que se observe o que está acontecendo no Meio
Ambiente. Há um desmonte radical de todas as formas de controle e
fiscalização. O mesmo acontece em todas as áreas. A Doutrina de
Segurança Nacional de eliminação do inimigo interno está sendo
levada com uma seriedade que nem a ditadura militar teve.
A
RETÓRICA DO ÓDIO
Ao
longo de uma pregação de quase duas décadas, Olavo de Carvalho
criou o que o professor João Cezar chama de sistema de crenças
Olavo de Carvalho. Esse sistema de crenças é uma espécie de ponto
de fuga que potencializa ao máximo os elementos do Orvil e da
Doutrina de Segurança Nacional. Ele desenvolveu com muita habilidade
uma retórica do ódio que traduz a Doutrina de Segurança Nacional
para a linguagem midiática das redes sociais. Sua estratégia, na
retórica do ódio, é, de um lado, uma desqualificação que torna o
outro um nada, e do outro, um conjunto de hipérboles que inviabiliza
o pensamento, porque suprime as mediações.
Todo
aquele que não concordar com ele é considerado um analfabeto
funcional educado pelo método Paulo Freire. O vocabulário inventado
pelo Olavo de Carvalho parte de uma
teoria conspiratória que casa perfeitamente com o Orvil.
Esse sistema de crenças de Olavo de Carvalho, segundo o professor, explodiu na cultura
brasileira com data marcada: 2015. Nas manifestações de 2015,
surgiu uma frase gritada pelos manifestantes: “Olavo tem razão!”.
Como um sistema de crenças não é contestável pela realidade,
quanto mais atacado, mais ele se fortalece. As pessoas se convencem de
que Olavo está sendo atacado porque tem razão.
De acordo com o professor João Cezar, há
uma convergência dos três elementos constitutivos do bolsonarismo: a Doutrina de Segurança
Nacional, o Orvil e essa retórica do Olavo de Carvalho. A retórica popularizou as outras duas. Parte considerável da análise feita por
Olavo em sua obra, de que existe uma infiltração gramsciana para a
tomada do poder pela esquerda no Brasil, está no Orvil.
Prossegue o professor: E esse tripé é muito poderoso. Os dois primeiros (Orvil e Doutrina de
Segurança Nacional) alimentam a mentalidade bolsonarista e o próprio
Exército. O general Mourão homenageou Ustra em sua despedida do
Exército. Muitas das atitudes do general Heleno só são
compreensíveis a partir da mentalidade Orvil, de revanchismo e
revisionismo.
O terceiro é o sistema de crenças criado por Olavo de Carvalho, utilizando excessivamente as redes sociais, quando ele se mudou para os Estados Unidos.
É Olavo de Carvalho que alimenta a guerra
cultural bolsonarista que é, do ponto de vista de mobilização das
massas, sobretudo as digitais, um fenômeno sem paralelo na história
política brasileira recente. Essa guerra cultural se vale dos
sentimentos mais arcaicos da cultura humana; o mais arcaico de todos,
que é a violência, está na superfície da guerra cultural
bolsonarista – não há guerra cultural bolsonarista sem retórica
do ódio e sem violência explícita. Nada é mais primitivo que a
invenção constante de inimigos e a promoção de linchamentos, e a
guerra cultural bolsonarista é inteiramente baseada nessa criação
sistemática de inimigos para sua transformação em bodes
expiatórios. A massa se une no ódio àquela figura, mesmo que num
momento anterior ela tenha sido idolatrada. O que ocorreu com o
Sergio Moro, para os bolsonaristas, mais radicais é um fenômeno
antropológico de grande alcance, um ritual dos mais arcaicos, que é
o de formação de um bode expiatório. Essa guerra cultural
bolsonarista tem uma enorme capacidade de produção de sentimentos
de violência desse sacrifício expiatório, a capacidade que isso
tem de produzir mobilização, de acordo com o professor, nós estamos vendo, essa força
aglutinadora da violência e do ódio.
Mas
o professor João Cezar aponta um paradoxo: sem guerra cultural, não
há bolsonarismo. Mas com guerra cultural, não pode haver governo
Bolsonaro.
A
reunião do dia 22 de abril confirma o paradoxo. Destaca-se,
num primeiro momento, que há um plano em curso: o plano da
destruição das instituições e supressão de direitos. Para o
ministro Paulo Guedes o inimigo são os funcionários públicos. É o
inimigo a ser explodido, o servidor público. O Ricardo Salles se
refere a passar as boiadas das regulações infralegais. O
responsável pela Caixa Econômica se refere ao não apoio às
pequenas empresas. E assim segue.
Para João Cezar, tem
um plano ali. Ao mesmo tempo que surgem todas essas ideias
mirabolantes que correspondem perfeitamente ao plano da guerra
cultural, não há nada decidido do ponto de vista concreto. Não há
nenhum dado objetivo para formalizar políticas.
Se
há essa capacidade incomum e inédita de manter massas sob constante
excitação, porque o bolsonarismo não governa sem inimigos criados
em série, ele é vazio do ponto de vista do conteúdo. Não se pode
criar inimigos constantemente levando em consideração dados
objetivos, mas sem considerar dados objetivos não há governo.
Ainda de acordo com o professor João, nós nos aproximamos do momento mais grave da vida brasileira desde a redemocratização. Teremos uma recessão econômica cuja recuperação não se encontra ainda no horizonte, e o colapso do governo Bolsonaro é inevitável, porque não se pode governar sem dados objetivos.
A
armadilha da guerra cultural é essa: você se mantém numa aparência
de êxito permanente, mas você não consegue fazer nada. Você está
totalmente preso na armadilha do seu próprio êxito aparente, que é
virtual e em boa medida alimentado por robôs. Quanto maior o colapso
do governo, maior a virulência da guerra cultural e maior a
tendência dessa guerra virtual transbordar para as ruas. Não dá
para governar um país criando inimigos o tempo todo.
Esse
colapso vai acelerar o processo da violência, as redes sociais
estarão cada vez mais violentas, os bolsonaristas, cada vez mais
aguerridos, o número deles tenderá a diminuir porque só sobrarão
os fanatizados, mas estes tenderão a violências inesperadas e fora
de controle.
Veja
a entrevista do professor João Cezar em "A
PUBLICA"
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