Há
99 anos, o dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936) publicou
uma peça de teatro chamada "Assim
é (se lhe parece)".
Observar os acontecimentos das últimas semanas no Brasil através
das redes sociais é como estar na plateia dessa peça centenária e
tentar chegar a alguma conclusão que faça sentido em tempo real –
sem saber até onde isso é possível neste momento de ânimos e
gestos exaltados no país.
Os
fatos são os fatos, goste-se deles ou não. Mas uma torrente
apaixonada de interpretações de lado a lado tem afogado qualquer
objetividade. O que temos, hoje, são versões e pontos de vista que
pouco (ou nada) dialogam com seus contrários. É o que acontece na
peça de Pirandello, onde cada um adapta as informações disponíveis
às próprias convicções ou interesses.
Viramos uma
nação de advogados, cada qual se agarrando a evidências (de culpa
ou inocência, estamos em modo perigosamente binário) para defender
seus clientes ou causas.
Nada escapa à
guerra aberta de versões. Ninguém se contenta mais em ser mero
espectador. Até mesmo não se posicionar – sobre o Lula, a Dilma,
o Moro, o Delcídio, a manifestação, a babá ou a babá da babá –
é proibido: os que escolheram não escolher lado têm sido xingados
de "isentões". Com este carimbo, vem a condenação: ou
você concorda com o meu lado ou você é conivente com os
"golpistas".
O problema é
que não há consenso sobre de onde virá o "golpe".
Há quem diga
que ele está sendo forjado pela oligarquia branca e alérgica ao
povo, com o apoio massificante da "grande mídia" e a
inocência útil de 3,6 milhões de pessoas incapazes de pensar, que
foram às ruas pedir a renúncia ou o impeachment de Dilma no último
domingo.
Outros
garantem que foi Lula, suspeito de crimes na Operação Lava Jato,
quem virou a mesa; ao se tornar ministro-chefe da Casa Civil, ganhou
espaço para manobrar contra o impeachment e as investigações.
Há os que
defendem a tese do autogolpe: ao levar Lula de volta ao Palácio do
Planalto, Dilma se colocou como figura meramente decorativa. E há
ainda os que afirmam que o golpista é o juiz Sergio Moro, que
escolhe a dedo os vazamentos de grampos telefônicos e delações
premiadas apenas para prejudicar (insira aqui o seu prejudicado:
Aécio, Lula, Dilma, Renan, Temer, Cunha, Odebrecht...).
Assim é, se
lhes parece.
O mesmo
exercício de retórica (ou "farsa filosófica", diria o
dramaturgo) ocorre com as delações. Especialmente a do senador
Delcídio do Amaral, compartilhada e comentada largamente – desde
que o denunciado jogue no outro time.
Idem para os
áudios vazados de Lula: ?
O clima é de
histeria coletiva, como a que toma a cidadezinha do sul da Itália
onde se passa a história de Pirandello. O episódio da babá no domingo de
protestos é um exemplo.
Pouco
adiantou ela própria ter dado entrevista e dizer que prefere usar o
uniforme a gastar as próprias roupas no trabalho. Houve quem a
chamasse de "capitão do mato" por não se revoltar contra
a opressão de seu patrão – para "piorar", o sujeito é
banqueiro, torce pro Flamengo e aparece na foto vestido de
verde-e-amarelo, as cores dos "coxinhas". E as escolhas da
mulher, como ficam?
Muita gente
viu racismo explícito neste episódio, assim como houve quem tenha
dito que a volta de Lula ao poder foi uma vitória do... machismo. A
tese da peça de Pirandello, encenada por todos nós neste exato
momento, é de que o relativismo extremado frustra e abala as
relações sociais. E não é difícil que descambe para a violência.
Um casal foi
agredido por manifestantes pró-impeachment na avenida Paulista na
última quarta-feira simplesmente porque tinha uma bicicleta vermelha
(!) e "cara de petistas".
Mas será que
eram mesmo do PT? O vídeo que mostra o episódio não deixa claro. É
uma cena de violência gratuita. Mas assim é, se lhes parece. Ou,
como diz a controversa senhora Frola no fim da peça do dramaturgo,
"eu sou aquela que se crê que eu seja".
O fato de que
não existe apenas uma verdade, mas pontos de vista que muitas vezes
são opostos – e plausíveis – não pode ser motivo para romper
contratos sociais, como a liberdade de expressão, o direito de ir e
vir e o combate à violência. O fim do diálogo é o triste início
dos totalitarismos. Temos que refletir muito. E voltar a conversar.
Ricardo
Calazans, jornalista e colaborador da BBC Brasil
Fonte: "noticias.terra.com.br"
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