A
“barbárie” é o serviço sujo que atende ao desprezo que a alma
deste país escravocrata tem pela “ralé”
"A
pane geral dos presídios brasileiros foi noticiada com palavras
fortes: chacina, morticínio, barbárie, selvageria, matança,
carnificina, massacre, horror, facínoras, bestialidade. É
compreensível, pois é justo. Num país onde vigora a injustiça
institucionalizada, ao menos as palavras do noticiário foram justas.
A explosão (palavra forte) de violência (outra palavra forte) nos
cárceres do Amazonas e de Roraima, com pilhas de cadáveres
decapitados e desmembrados, num número total de 91 mortos, sem
contar os sepultamentos clandestinos que vêm sendo encontrados
dentro das prisões, não poderia ser descrita em termos amenos e
átonos. No sistema penal do Brasil, nada do que nos torna humanos
permanece de pé. Nas celas deste país, não há mais diferença
moral entre ratos e homens (para fechar o parágrafo com outra imagem
forte).
O
problema dessas palavras, dessas imagens por demais abrutalhadas,
hiperbólicas e contundentes é que elas atordoam o pensamento, mais
ou menos como um terremoto impede os gestos milimétricos de um
artista que desenha uma orquídea com traços a nanquim. A linguagem
tonitruante, como a dinamite, pode ser ouvida de longe, mas destrói
os fios que tecem a lógica e as antenas que dão vida à
sensibilidade. O vocabulário flamejante queima os ouvidos e dói na
pele, sem dúvida expressa um grito de indignação legítima, mas
não raciocina, não convida à reflexão. Traduz com intensidade
dramática o que nos ultraja, mas não nos leva a entender por que o
que nos ultraja aconteceu, segue acontecendo e ainda acontecerá
tantas vezes.
As
palavras fortes causam um efeito imediato, sensacional, retumbante –
mas não vão além. Se quisermos – e precisamos querer – ir
além, se quisermos compreender o incompreensível, temos de ter a
coragem de encarar ideias menos óbvias, menos fáceis. Temos de
olhar menos para “eles” – sejam “eles” os mortos ou seus
algozes – e temos de olhar mais para nós. Se fizermos esse
esforço, veremos algo que nos assusta e nos envergonha. Veremos que
quem morreu agora nessas prisões do Norte – e no Carandiru, em
1992, e na Casa de Custódia de Benfica, em 2004, e no Complexo
Penitenciário de Pedrinhas, em 2010 – não foram “eles”, mas
fomos nós. Não foram meramente aqueles de quem se diz “não são
santos”. Foi uma parte de nós. É a nossa própria humanidade, a
minha e a sua, que morreu ali. É a nossa sociedade, uma dimensão
dela. É o nosso futuro.
Pelas
mesmas razões, os assassinos daqueles homens trancafiados pelo
Estado também não foram outros “eles”, os tais “facínoras”
das facções criminosas organizadas, mas fomos nós, também. As
cadeias concentram a mentalidade e os valores (ou a falta de valores)
da sociedade que delas se serve. É mais do que hora de admitirmos:
somos nós que matamos e morremos nos cárceres do Brasil.
Um
secretário da Presidência da República (secretário nacional da
“juventude”, imagine só) foi flagrado em vilipêndio contra os
assassinados, dizendo que muitos mais deveriam ter a mesma sina.
Perdeu o posto, é verdade, mas não por pensar como pensa, e sim por
ter dito o que pensa em lugar inadequado. O que ele pensa, nós
sabemos muito bem, é o senso comum continental. É possível que
você tenha recebido mensagens nas redes sociais, de gente que você
conhece e até gosta, proclamando que bandido tem mais é que morrer.
Aí está a face da pulsão de morte que se realiza nas
penitenciárias.
Os
“massacres”, as “carnificinas” são a realização desse
desejo. É triste, é muito triste dizer isso, assim, a seco, mas a
“barbárie”, a “selvageria”, o “horror” são o serviço
sujo que atende ao desprezo que a alma deste país escravocrata tem
pela “ralé”, pela senzala, pela “escória”. As prisões do
Brasil são o pelourinho gradeado, são a antecipação do inferno,
porque nós as fizemos assim. Sempre foram medievais, embora isso só
tenha incomodado as autoridades mais recentemente, quando foi ficando
claro que algumas delas poderiam fixar residência, ainda que
temporária, dentro delas.
Quanto
a nós, sejamos ou não autoridades, sejamos ou não políticos
suspeitos, sejamos ou não indiciados, saibamos que aqueles presos
esquartejados, sem rosto, sem história, sem visibilidade, todos
“eles” somos nós, assim como somos, também, uma fibra do braço
que os assassinou. Os cárceres no Brasil não ficaram assim porque o
Brasil se descuidou deles. Ficaram assim porque o Brasil os desejou
visceralmente – e construiu cada um deles, um por um, para negar o
que somos, para extirpar o que somos, para sumir com o corpo que
somos nós".
EUGÊNIO
BUCCI