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domingo, 22 de janeiro de 2017

Quem morreu lá fomos nós

A “barbárie” é o serviço sujo que atende ao desprezo que a alma deste país escravocrata tem pela “ralé”

"A pane geral dos presídios brasileiros foi noticiada com palavras fortes: chacina, morticínio, barbárie, selvageria, matança, carnificina, massacre, horror, facínoras, bestialidade. É compreensível, pois é justo. Num país onde vigora a injustiça institucionalizada, ao menos as palavras do noticiário foram justas. A explosão (palavra forte) de violência (outra palavra forte) nos cárceres do Amazonas e de Roraima, com pilhas de cadáveres decapitados e desmembrados, num número total de 91 mortos, sem contar os sepultamentos clandestinos que vêm sendo encontrados dentro das prisões, não poderia ser descrita em termos amenos e átonos. No sistema penal do Brasil, nada do que nos torna humanos permanece de pé. Nas celas deste país, não há mais diferença moral entre ratos e homens (para fechar o parágrafo com outra imagem forte).
O problema dessas palavras, dessas imagens por demais abrutalhadas, hiperbólicas e contundentes é que elas atordoam o pensamento, mais ou menos como um terremoto impede os gestos milimétricos de um artista que desenha uma orquídea com traços a nanquim. A linguagem tonitruante, como a dinamite, pode ser ouvida de longe, mas destrói os fios que tecem a lógica e as antenas que dão vida à sensibilidade. O vocabulário flamejante queima os ouvidos e dói na pele, sem dúvida expressa um grito de indignação legítima, mas não raciocina, não convida à reflexão. Traduz com intensidade dramática o que nos ultraja, mas não nos leva a entender por que o que nos ultraja aconteceu, segue acontecendo e ainda acontecerá tantas vezes.
As palavras fortes causam um efeito imediato, sensacional, retumbante – mas não vão além. Se quisermos – e precisamos querer – ir além, se quisermos compreender o incompreensível, temos de ter a coragem de encarar ideias menos óbvias, menos fáceis. Temos de olhar menos para “eles” – sejam “eles” os mortos ou seus algozes – e temos de olhar mais para nós. Se fizermos esse esforço, veremos algo que nos assusta e nos envergonha. Veremos que quem morreu agora nessas prisões do Norte – e no Carandiru, em 1992, e na Casa de Custódia de Benfica, em 2004, e no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em 2010 – não foram “eles”, mas fomos nós. Não foram meramente aqueles de quem se diz “não são santos”. Foi uma parte de nós. É a nossa própria humanidade, a minha e a sua, que morreu ali. É a nossa sociedade, uma dimensão dela. É o nosso futuro.
Pelas mesmas razões, os assassinos daqueles homens trancafiados pelo Estado também não foram outros “eles”, os tais “facínoras” das facções criminosas organizadas, mas fomos nós, também. As cadeias concentram a mentalidade e os valores (ou a falta de valores) da sociedade que delas se serve. É mais do que hora de admitirmos: somos nós que matamos e morremos nos cárceres do Brasil.
Um secretário da Presidência da República (secretário nacional da “juventude”, imagine só) foi flagrado em vilipêndio contra os assassinados, dizendo que muitos mais deveriam ter a mesma sina. Perdeu o posto, é verdade, mas não por pensar como pensa, e sim por ter dito o que pensa em lugar inadequado. O que ele pensa, nós sabemos muito bem, é o senso comum continental. É possível que você tenha recebido mensagens nas redes sociais, de gente que você conhece e até gosta, proclamando que bandido tem mais é que morrer. Aí está a face da pulsão de morte que se realiza nas penitenciárias.
Os “massacres”, as “carnificinas” são a realização desse desejo. É triste, é muito triste dizer isso, assim, a seco, mas a “barbárie”, a “selvageria”, o “horror” são o serviço sujo que atende ao desprezo que a alma deste país escravocrata tem pela “ralé”, pela senzala, pela “escória”. As prisões do Brasil são o pelourinho gradeado, são a antecipação do inferno, porque nós as fizemos assim. Sempre foram medievais, embora isso só tenha incomodado as autoridades mais recentemente, quando foi ficando claro que algumas delas poderiam fixar residência, ainda que temporária, dentro delas.
Quanto a nós, sejamos ou não autoridades, sejamos ou não políticos suspeitos, sejamos ou não indiciados, saibamos que aqueles presos esquartejados, sem rosto, sem história, sem visibilidade, todos “eles” somos nós, assim como somos, também, uma fibra do braço que os assassinou. Os cárceres no Brasil não ficaram assim porque o Brasil se descuidou deles. Ficaram assim porque o Brasil os desejou visceralmente – e construiu cada um deles, um por um, para negar o que somos, para extirpar o que somos, para sumir com o corpo que somos nós".
EUGÊNIO BUCCI