Atônitos diante de uma passeata na Avenida Rio Branco, policiais não sabiam a quem proteger ou prender quando preciso. Gravações nas estreitas vielas da favela do Rola traziam o exato momento em que um PM manda desligar a câmera. Um poderoso helicóptero buscava no meio da noite - em outras vielas estreitas - o traficante Matemático c, diante de uma possível confirmação de identidade, tem sua artilharia acionada como em uma batalha do cerco à Saigon. A última conta deste rosário pode chegar sem grande surpresa para um desatento. O GPS das viaturas da PM em operação na Rocinha no dia do desaparecimento do pedreiro Amarildo estavam desligados. Logo o GPS que, ao ser colocado nos carros da polícia, marcou um dos avanços da modernidade da instituição.
Todos estes momentos que ocuparam a mídia nos últimos meses pertencem ao mesmo fato gerador. A polícia do Rio de Janeiro não possui um claro protocolo de procedimentos. O arbítrio do policial diante das mais variadas situações conflituosas acaba gerando um espaço de ação em que a capacidade de discernimento de uma polícia mal treinada e mal remunerada mostra sua face mais atrasada. Sim, ocorre um conflito entre a velha polícia de enfrentamento (que descende do capitão do mato) com a modernidade que vem sendo tentada pelos agentes públicos nos últimos anos, prometida em especial a partir da promissora experiência das UPPS.
A população, esta sim com motivos para estar atônita, acaba devolvida aos paradigmas anteriores ao processo de modernização, como aquele que contrapõe repressão e direitos humanos. Não estranhamente voltamos a ler declarações furiosas contra os "protetores de bandidos", acompanhadas de outras que também exageradamente identificam na polícia a fonte de todos os males da sociedade. Garantir o direito de manifestação e de defesa dos acusados não significa permitir que pequenos grupos coloquem fogo na cidade.
O policial da rua deveria ser o maior interessado na defesa da lei e de procedimentos mais claros. Deveria ser treinado para as situações do dia a dia democrático. Sem procedimentos claros que balizem sua atuação, o policial - muitas vezes a pedido do senso comum -, executa ações que o colocam ao arrepio das instituições e do próprio processo civilizatório. Muitos batem palmas quando acontece em vielas pobres com um traficante de nome jocoso, mas todos se enfurecem quando o atingido é um pobre pedreiro da Rocinha.
Importante que tenhamos neste momento a capacidade de não perder o trem da História, que guarda avanços, criando propostas para a polícia moderna que queremos, desvendando também seus aspectos mais atrasados. Por isso a OAB/RJ lançou a campanha Desaparecidos da democracia; Pessoas reais, mortes invisíveis, em sua sede.
Na campanha, vamos lutar pelo esclarecimento de milhares de mortes registradas - mais de dez mil entre 2001 e 2011, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública - como autos de resistência pela PM nos últimos anos. Depois de exigir informações sobre os casos de cidadãos que desapareceram nos tempos da ditadura, a Ordem entende que é hora de jogar luz sobre esse canto sombrio do período democrático, com base numa premissa: defender a lei e procedimentos policiais claros é defender a sociedade e o próprio policial.
Felipe Santa Cruz é presidente da OAB/RJ.
Artigo publicado no jornal O Fluminense.
Publicado por OAB - Rio de Janeiro (extraído pelo JusBrasil)