Cruzeta (RN) tem apenas 8.000 habitantes. Foto de JOHN LENNON GÓES |
A praça João de Góes atualmente, local onde as plantas de maconha foram colocadas. Foto JOHN LENNON GÓES |
A
pequena cidade de Cruzeta (RN) tornou-se notícia em todo o Brasil há
22 anos. Na época, foram encontradas diversas plantações
de maconha no
município. Havia erva em várias localidades da região, entre elas
em casas de moradores, em uma praça e até no cemitério.
O
caso ganhou repercussão em todo o país e até hoje é alvo de
comentários dos moradores da cidade de 8 mil habitantes. Entre os
mais novos, alguns têm dificuldade para acreditar que o caso tenha
acontecido no pacato município.
Nas
redes sociais, uma reportagem de um telejornal sobre as plantações
em Cruzeta, na época em que elas foram descobertas, constantemente
volta a repercutir. No YouTube, um vídeo sobre o assunto tem mais de
200 mil visualizações.
Os
moradores que consumiam a planta alegaram à polícia, logo que o
caso veio à tona, que utilizavam a erva somente para fins
medicinais. Eles afirmaram que ficaram surpresos com a descoberta de
que se tratava de maconha. Na época, eles tiveram medo de ser
presos, pois o ato de plantar a erva, mesmo que em pouca quantidade,
poderia ser considerado crime.
Por
mais de um mês, a BBC News Brasil apurou o caso. Falando com
especialistas, profissionais que participaram da situação, relatos
de moradores e acesso ao inquérito policial sobre o assunto, a
reportagem descobriu os detalhes sobre a história mais famosa da
pequena Cruzeta.
As plantações
Policiais descobriram em 1996 que plantas presentes em casas e na praça da cidade eram maconha. Reprodução |
Era
noite de sábado, no início de junho de 1996, quando a delegacia de
polícia de Cruzeta recebeu uma denúncia anônima sobre um suspeito
que estaria vendendo maconha em um bar, em uma região próxima à
saída da cidade.
Os
policiais foram ao local e encontraram um rapaz com uma pequena
quantidade da droga. Eles descobriram que, minutos antes, o jovem
havia jogado uma sacola de plástico por cima de um muro, em um
terreno vizinho ao bar.
Conforme
relatos dos policiais, na sacola foram encontradas diversas folhas de
uma planta de cor verde, aparentemente recém-colhida, semelhante à
maconha. O suspeito foi preso e encaminhado à delegacia, onde
declarou ter conseguido a erva no quintal de um idoso de Cruzeta.
Na
segunda-feira seguinte, a polícia do município obteve um mandado de
busca e apreensão, expedido pela Justiça, que permitiu que fossem
até a residência de João*, o idoso apontado pelo rapaz, na época
com 63 anos. No muro da casa dele encontraram uma planta de três
metros de altura.
Segundo
a polícia, João pediu para que não cortassem a planta. "Ele
tinha vários tambores com a erva curtida em água, consumia
diariamente e tratava aquilo como um líquido santo", relata a
professora Renilda Medeiro, de 54 anos, que mora em Cruzeta desde a
infância. Segundo ela, o idoso tinha câncer e acreditava que o
líquido o ajudava na luta contra a doença. "Ele dizia que essa
planta aliviava todas as dores que sentia e impedia que a doença
avançasse."
De
acordo com Renilda, muitos moradores de Cruzeta, ao saber dos
benefícios que João afirmava conseguir com a erva, haviam pedido
mudas ao idoso. "Várias pessoas quiseram plantar em casa",
conta.
Logo
que encontrou a plantação na casa do idoso, a polícia de Cruzeta
cortou a erva e a levou para a delegacia da cidade.
Em
depoimento, prestado em setembro de 96, João declarou que a planta
estava na sua casa havia oito anos, desde que sua mulher trouxera a
erva da casa de uma irmã, em Natal (RN). O idoso afirmou que a
utilizava para curar doenças. "Ele (João) disse que várias
pessoas pediam galhos para fazer remédios. João nunca soube se
alguém usava a mesma como entorpecente", narra parte do
inquérito policial sobre o caso, ao qual a BBC News Brasil teve
acesso.
Foram
encontradas plantas em, ao menos, seis residências de Cruzeta e em
locais como a praça principal perto da prefeitura, em um cemitério
e em frente a uma igreja. "Algumas chegavam a seis metros de
altura", relata o escrivão do cartório de Cruzeta na década
de 90, Pedro George de Brito.
"As
praças de Cruzeta eram bastante arborizadas, então, era comum que
as pessoas plantassem por ali. Em uma dessas, acabaram plantando
maconha também", comenta Renilda.
O uso da maconha medicinal
Nas
residências em que foram encontradas as plantas, viviam pessoas
acima de 50 anos, que acreditavam nos benefícios trazidos pela erva
para a saúde. Elas a utilizavam para diversos tipos de mazelas: dor
de cabeça, problemas respiratórios, epilepsia, reumatismo,
enxaqueca, entre outras dificuldades.
"Tudo
era tratado com o chá da planta. Bastava a notícia de que alguém
estava padecendo com algum problema de saúde que chegava a notícia
do chá milagroso", declara Brito.
Os
que plantavam, doavam galhos a outros que sentiam algum mal-estar. A
planta era usada de duas formas: curtida em água ou álcool, ou em
um chá feito com as folhas.
Lúcia*,
na época com 30 anos, em depoimento à polícia de Cruzeta, relatou
que plantou a erva em sua residência. "Ela disse ter chegado a
usá-la como medicação, pois estava sentindo uma dor na coluna e
ficou curada, por meio da referida planta. Ela não sabia que era
maconha", relata trecho do inquérito policial.
Conforme
Renilda, que afirma nunca ter utilizado a erva, era comum os idosos
recorrerem à planta. "Eles sentiam muitas dores musculares e
tomavam esse chá para melhorar", conta. Ela ressalta que os
mais jovens também usavam para fins medicinais. "Muitos
sentiram melhoras na saúde como em problemas de resfriados, asma e
cansaço."
"Até
onde temos conhecimento, ninguém nunca chegou a usar para fins
recreativos ou algo assim. As pessoas que utilizavam não sabiam
dessa finalidade da planta. Ela foi usada somente para fins benéficos
para a saúde", acrescenta.
Meses
depois de retirarem a erva da residência de João, Renilda relata
que o idoso morreu. "O pessoal diz que o que o mantinha vivo e
controlava o câncer dele era a planta", afirma. Segundo ela,
outra idosa, que também consumia o chá e tinha uma plantação em
casa também teve problemas depois de a erva ser apreendida. "As
pessoas acreditam que a saúde dela piorou depois que ficou sem
consumir a bebida, que aliviava as suas dores."
Apesar
de muitos moradores acreditarem que as plantas mantinham os idosos
bem de saúde, não houve nenhuma comprovação médica sobre o fato.
A liamba
Após serem apreendidas pela polícia, as plantas de maconha de Cruzeta foram incineradas. Reprodução |
A
Justiça determinou que fossem cortadas e apreendidas todas as
plantações de maconha da cidade. O caso repercutiu na região e
diversos moradores foram à delegacia somente para conhecer a famosa
planta apreendida no município.
"Na
época, existiam duas correntes, uma a favor e outra contra a planta.
Muita gente achava um absurdo mandar cortar aquilo, porque não fazia
mal a ninguém. Mas havia outros que eram a favor de retirar as
plantas da cidade. O certo é que a polícia fez o que deveria ser
feito", declara o juiz Sérgio Dantas, que na época era o
responsável pela comarca de Cruzeta.
Logo
após ser apreendido e permanecer em observação por dias, o
material foi incinerado em fornos das indústrias cerâmicas da
cidade.
Parte
dos itens, em vez da incineração, foi encaminhada ao Instituto
Técnico-Científico de Perícia do Rio Grande do Norte (ITEP-RN),
para análise. O laudo identificou a erva como liamba. "É uma
planta Cannabis sativa, uma das formas como é popularmente conhecida
a maconha", explica Renato Filev, pesquisador do Centro
Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Entre
os moradores de Cruzeta, houve relatos de pessoas que chegaram a
tentar fumar a planta, como foi o caso de Francisca*, na época com
37 anos. "Ela disse que já fumou, mas não sentiu nenhum
efeito. Não sabe dizer se alguém usava como droga. A mulher sabe
que se misturada com uísque, a erva tem efeito entorpecente",
relata trecho do inquérito policial.
Segundo
Filev, a liamba pode ser menos alucinógena que a maconha utilizada
para fins recreativos. Isso porque esta última costuma apresentar
teor de canabinoides - o princípio ativo - em maior quantidade, em
razão de motivos genéticos.
O
estudioso pontua que a liamba tem função terapêutica, assim como
relatado pelos moradores de Cruzeta. Diversos medicamentos à base de
canabidiol, um dos princípios ativos da Cannabis sativa, são
desenvolvidos em todo o mundo para inúmeras finalidades medicinais.
A criminalização da maconha
Processo sobre descriminalização do uso de drogas tramita no Supremo Tribunal Federal. Foto: GETTY IMAGES |
No
Brasil, plantar maconha é crime. Conforme a Lei das Drogas, de 2006,
a pessoa que tiver uma plantação considerada pequena poderá sofrer
penalidades semelhantes àquelas aplicadas aos que se enquadram como
usuários. Nesse caso, podem ser determinadas punições como
advertência, prestação de serviços à comunidade e multa.
Em
caso de grandes plantações, a situação é equiparada ao tráfico
e a pessoa pode ser condenada à reclusão de cinco a 15 anos, além
da aplicação de multa.
No
Supremo Tribunal Federal (STF), tramita um processo que trata sobre a
descriminalização do uso de drogas. O placar atual é de três
votos a favor da medida - proferidos pelo relator Gilmar Mendes e
pelos ministros Edson Fachin e Luis Roberto Barroso - e nenhuma
manifestação contrária.
A
votação está interrompida desde setembro de 2015, quando o
ministro Teori Zavascki pediu vista do processo. O sucessor dele,
ministro Alexandre Moraes, é o próximo a votar. Ao menos por ora,
não há prazo para que o procedimento seja retomado.
"Caso
a descriminalização seja aprovada, é provável que as plantações
para consumo próprio também deixem de ser crime", explica o
advogado criminalista Marcelo Valdir Monteiro, mestre em Direito
Penal pela USP. Segundo ele, será, nesse caso, necessário
estabelecer a quantidade considerada como consumo próprio.
No
caso de Cruzeta, a legislação em vigor em 1976 determinava que
usuários e pessoas que tinham pequenas plantações de maconha
poderiam receber penas de reclusão de seis meses a dois anos. O medo
da prisão era o maior temor entre os moradores da cidade do Rio
Grande do Norte.
"Isso
gerou um terror muito grande, ainda mais porque eram pessoas de
idade. O pessoal ficou com medo de ser preso", relata o juiz
Sérgio Dantas.
Logo
após concluir as investigações sobre o caso, o delegado apontou
que não havia indícios de que os moradores da cidade usassem a
planta como entorpecente. "Eles cultivavam a referida para curar
doenças e para cicatrizar cortes", concluiu o inquérito,
arquivado sem que ninguém fosse indiciado.
Depois
que o caso foi encerrado, Pedro George de Brito conta que a cidade
recebeu ações de conscientização sobre as plantas. "Foram
feitas palestras em escolas e em outros locais da cidade, para
orientar sobre os riscos de ter a liamba em casa, nas calçadas ou
nas praças. Os moradores foram informados sobre os riscos de uma
eventual apreensão de novas ervas e da consequente criminalização,
caso houvesse alguma planta que não foi podada", diz.
De
acordo com a Polícia Civil da região, desde então não houve mais
nenhum registro de plantação de liamba em Cruzeta.
Para
Renilda, que se diz favorável à descriminalização das drogas,
Cruzeta foi pioneira no tema no Brasil. No entanto, segundo ela, "há
muitos moradores que não concordam" com isso.
A
professora ressalta que as plantações se tornaram um fato histórico
para o município. "No começo, foi algo tenso, mas depois as
pessoas começaram a achar engraçado, porque envolveu muita gente
acima de qualquer suspeita", declara.
Segundo
ela, apesar da surpresa dos moradores ao descobrir que havia diversas
plantações de maconha na cidade, o que mais impactou foi o fato de
Cruzeta ter sido mencionada em rede nacional. "A questão das
ervas foi uma coisa até que corriqueira, apesar de ter sido muito
comentada. Mas a notícia que mais surpreendeu a todos foi assistir a
Cruzeta no Fantástico. Ninguém nunca imaginou que a
nossa cidadezinha pacata, do interior, fosse aparecer para todo o
Brasil, ainda mais dessa forma", comenta.
*Os
nomes verdadeiros dos moradores da cidade foram alterados
Vinícius
Lemos
Fonte: "bbc"