Em todos os dicionários especializados que consultei, rio é um curso d'água natural, maior do que um riacho ou um córrego, que desemboca no oceano, num lago ou noutro rio. Rio que se preze começa na nascente e morre na foz.
Sobre os Rios Papicu e Frecheiras, o "Plano da Bacia Hidrográfica da Região dos Lagos e do Rio São João", de autoria de Luiz Firmino Martins Pereira e Paulo Bidegain da Silveira Primo (junho de 2005), informa que os dois rios acima citados são afluentes do Rio Una pela margem direita. Em Outubro de 2005, o "Projeto Estudo de Alternativas para o Lançamento dos Efluentes das Estações de Tratamento de Esgoto dos Municípios de Araruama, Armação dos Búzios, Cabo Frio, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia", formulado pela Geoprocessamento e Estudos Ambientais por encomenda do Consórcio Intermunicipal Lagos-São João, endossa que o Papicu e o Frecheiras são afluentes do Una pela margem direita. O estudo "Modelagem da Qualidade das Águas da Bacia do Rio Una após Reversão dos Efluentes Tratados de Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia e Cabo Frio", redigido por Marcos von Sperling (fevereiro de 2008), confirma que o Rio Papicu, escolhido para receber o esgoto de Iguaba Grande, e o Rio Frecheiras, condenado a receber o esgoto de São Pedro da Aldeia, desembocam no Una.
Para afastar qualquer dúvida, examinei o mapa oficial da Bacia do Una, de autoria do Consórcio Intermuncipal Lagos-São João, e constatei o que os estudos mencionados sustentam: os Rios Papicu e Frecheiras são afluentes do Una pela margem direita. Sublinhei em vermelho os dois rios no mapa para que o leitor se certifique do que escrevo.
No alto, em sentido perpendicular à costa, corre o Rio Una. À esquerda, o curso do Rio Papicu e, à direita, o Rio Frecheiras.
No entanto, surpreso, leio em matéria com título de "Comissão de Búzios faz reunião com CILSJ para esclarecer transposição de efluentes para bacia do Rio Una", publicada na Revista Cidade, de Cabo Frio, em 20 de junho do fluente ano, que o "Consórcio (Intermunicipal Lagos-São João) insistiu que o deságue dos efluentes tratados será feito nos Rios Papicu e Flexeira, que não se ligam mais fisicamente com o Rio Una." Afinal, o que aconteceu com os dois afluentes do Rio Una? O Consórcio decretou que eles não integram mais a Bacia? Será que os dois rios se rebelaram contra o rio principal e resolveram formar nova(s) bacia(s)?
A nascente de ambos continua no mesmo lugar ou os cursos d'água insurgentes fincaram as respectivas nascentes em outros lugares? Terão elas sido realocadas em outros pontos por decisão do Consórcio? Onde estará a foz dos dois agora?
Recuperando-me do estupor causado pela informação sobre a mudança dos dois rios, começo a lembrar que, nos meus estudos de eco-história, encontrei situações análogas sobre rios. Eles podem perder a foz e se transformar em lagoas alongadas devido a transformações geológicas. Quem examina um mapa geológico da Região Norte Fluminense encontrará, na Formação Barreiras à margem esquerda do Rio Paraíba do Sul, uma sequência de lagoas que, antes de 5.000 anos antes do presente, eram rios com foz no mar. A formação de uma grande restinga tamponou suas desembocaduras e eles se transformaram em lagoas alongadas. Dentre elas, assinalamos as Lagoas de Dentro, da Roça, Salgada, de Macabu, de Sesmaria, de Imburi e da Saudade.
Quando barradas naturalmente pela restinga, as águas desses antigos rios alastraram-se e aumentaram a espessura da lâmina líquida, o que possibilitou a ultrapassagem de divisores de água e a constituição de lagoas com forma de espinha de peixe ou dendrítica. Mesmo assim, entre o tabuleiro e a restinga, restou um dreno natural que escoava as águas dessas lagoas em tempos de cheia para o Rio Guaxindiba. O Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) aproveitou essa linha natural de drenagem para abrir o Canal Engenheiro Antonio Resende, que liga a Lagoa do Campelo, na restinga, ao Rio Guaxindiba. Não é o que aconteceu com os Rios Papicu e Frecheiras, mas fica a lição deixada pelo poeta latino Horácio: pode-se afastar a natureza para longe, mas ela sempre tende a voltar.
Tal barragem pode também ser obra da mão humana, sequiosa de algum ganho econômico. Foi o que aconteceu com alguns rios, cuja foz localizava-se no mar, na costa que se estende do Rio Itapemirim (ES) ao Rio Guaxindiba (RJ). Na hoje Lagoa Funda, em Marataíses, o rio foi bloqueado para o fornecimento de água à população. O mesmo aconteceu com a Lagoa de Caculucaje, em cuja foz só a água doce chega ao mar. As marés, contudo, não entram mais no sistema. Nas Lagoas Salgada, Doce e de Tatagiba Açu, a atividade de lavra de terras raras empreendida pelas Indústrias Nucleares do Brasil (INB), atuando no município de São Francisco de Itabapoana, aterrou a foz dos rios e os transformou em lagoas. No caso do Tatagiba Açu, a população local se viu obrigada a rasgar uma vala para conter os transbordamentos. É de se ver a força das águas correndo por essa vala.
Por sua vez, o Tatagiba Mirim e um outro sistema foram de tal forma separados do mar que fica difícil compreender como eram antes das operações de lavra. Mas, curioso, e voltando a Horácio, os cursos d'água alagoados buscam seu curso original em tempos de cheia e conseguem, alguns deles, alcançar as desembocaduras ou construir outras.
Por fim, a redução da vazão pode levar um rio a perder competência para manter sua foz aberta. Cerca de doze grandes rios em vários pontos do mundo sofrem com este processo, destacando-se o Rio Colorado, que escavou o Grande Canion. Se, de fato, como afirma o Consórcio Intermunicipal Lagos-Rio São João, os Rios Papicu e Frecheiras não integram mais a Bacia do Una, creio que ou a barragem de sua foz ou a perda de vazão dificultam sua ligação com o rio principal. E eis que encontro a resposta para o Rio Papicu, pelo menos, no estudo "A inserção do conhecimento local na análise de vulnerabilidade da bacias hidrográficas às mudanças do clima: Bacia Lagos São João - RJ", de Natalia Barbosa Ribeiro, Denise Spiller Pena, Rosa Maria Formiga Johnsson, Angelo José Rodrigues Lima e Glauco Kimura de Freitas: o Rio Papicu desviado por pequenos proprietários.
O Consórcio parece aceitar esta mudança com a maior naturalidade. O mesmo deve ter acontecido com o Rio Frecheiras. Pelo andar da carruagem, outros rios poderão passar pelo mesmo processo diante do olhar complacente das autoridades.
Mas é preciso lembrar que o Plano de Bacia da Região Hidrográfica VI preconiza a restauração e a revitalização dos sistemas hídricos existentes em seu âmbito. Não é isto que se pretende fazer com a Lagoa de Araruama ao não mais se lançar nela água de esgoto? A Bacia do Una banha os municípios de Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia, Cabo Frio e Armação dos Búzios, sendo que este último é o que tem a maior parte do seu território dentro da bacia. O que o INEA e o Consórcio pretendem fazer? Acentuar e consolidar a separação do Papicu e do Frecheiras em relação ao Una? Querem municipalizar os rios para o uso de Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia?
Se for, tal propósito não tem o menor cabimento. A população de Búzios tem todo o direito de lutar primeiro pelo não lançamento de esgoto nos dois rios; depois, pela revitalização de toda a Bacia do Una, que pode ser uma alternativa em termos de abastecimento público de água, já que a Lagoa de Juturnaíba parece mostrar fortes sinais de esgotamento.
Arthur Soffiati é historiador ambiental e pesquisador do Núcleo de Estudos Socioambientais da UFF/Campos
Fonte: http://www.revistacidade.com.br/noticias/meio-ambiente/3396-o-futuro-do-rio-una-vi