A
pergunta deu voltas e mais voltas na cabeça de cidadãos americanos
logo após os atentados do 11 de Setembro. “Eles” eram os árabes
e muçulmanos. Atualmente, cada vez mais gente se pergunta o mesmo em
relação aos isolados norte-coreanos.
Sejamos
claros: não há dúvidas de que os cidadãos da República Popular
Democrática da Coreia (RPDC) tanto temem quanto execram os Estados
Unidos. Paranoia, ressentimento e um acentuado antiamericanismo são
sentimentos cultivados há décadas dentro do Reino Eremita.
Crianças aprendem na
escola a odiar americanos, enquanto adultos celebram todos os anos o
“Mês
da Luta contra o Imperialismo Norte-Americano”
(é em junho, por sinal).
Militares
norte-coreanos estão
ameaçando diretamente
os Estados Unidos, enquanto o regime liderado pelo brutal e sádico
Kim Jong-un produz notícias
falsas em
escala industrial para alimentar a autopropaganda. Na RPDC, o ódio
aos americanos é uma commodity que nunca está em falta.
“Só
que esse ódio não é totalmente fabricado”, explica no Washington
Post Blaine
Harden, que estuda a Coreia do Norte há anos. Parte desse ódio, diz
ele, “está embasado em fatos reais – pelos quais a Coreia do
Norte tem obsessão, enquanto esses mesmos fatos são tranquilamente
esquecidos pelos Estados Unidos”.
“Esquecidos”
porque se trata mesmo da “guerra esquecida”. Sim, estou falando
da Guerra da Coreia. Lembra dela? Aquela espremida entre a Segunda
Guerra Mundial e a do Vietnã? A primeira guerra “quente” da
Guerra Fria, de 1950 a 1953, e que, desde então, vem sendo
convenientemente deixada de lado por grande parte das discussões e
debates sobre o regime “louco”
e “insano”
de Pyongyang? Uma guerra que foi esquecida sem sequer ter terminado,
já que foi interrompida por um acordo
de armistício,
e não um tratado de paz. Esquecida apesar de os Estados Unidos terem
cometido sucessivos
crimes de guerra.
Como era de se esperar, isso continua a moldar a maneira como
norte-coreanos veem os Estados Unidos, ainda que boa parte dos
cidadãos americanos ignore o passado beligerante do próprio país.
Só
para constar, foram os norte-coreanos, e não os americanos ou seus
aliados sul-coreanos, que começaram a guerra, em junho de 1950, ao
cruzar o Paralelo 38 e invadir o Sul. “O que quase nenhum americano
sabe ou lembra é que nós bombardeamos o Norte inteirinho por 3
anos, sem nenhum tipo de cuidado em relação aos
civis”, explica Bruce
Cumings, historiador da Universidade de Chicago, em seu livro “The
Korean War: A History”.
Por
exemplo, quantos americanos sabem
que aviões
dos Estados Unidos jogaram sobre a península coreana mais bombas
(635 mil toneladas) e napalm (32.557 toneladas) do que em toda a
Guerra do Pacífico contra os japoneses, durante a Segunda Guerra
Mundial?
Quantos
sabem que, “no espaço de mais ou menos três anos, matamos (…)
20% da população”, para citar o
general Curtis LeMay, da Força Aérea americana, chefe do Comando
Aéreo Estratégico na Guerra da Coreia?
Vinte.
Porcento. Só para comparar, os nazistas exterminaram 20% da
população da Polônia pré-Segunda Guerra Mundial. De acordo com
LeMay, “fomos lá e lutamos, até destruirmos todas as cidades da
Coreia do Norte”.
Todas.
As. Cidades. Estima-se que mais de três milhões de civis foram
mortos no conflito, a maioria na parte norte da península.
Quantos
americanos já ouviram ou leram as declarações do secretário de
Estado Dean Rusk ou do juiz da Suprema Corte William O. Douglas? Rusk
era o responsável, dentro do Departamento de Estado americano, pelas
relações com o Extremo Oriente durante a Guerra da Coreia. Anos
depois, ele admitiria que
os Estados Unidos haviam bombardeado “cada tijolo que ainda
estivesse de pé, qualquer coisa que se movesse”. Segundo ele, os
pilotos americanos “bombardearam a Coreia do Norte inteira para
valer”.
Já
Douglas visitou a Coreia no verão de 1952. Ficou chocado com “a
miséria, as doenças, a dor, o sofrimento, a fome” que haviam sido
“agravadas” pelos ataques aéreos. Depois de acabados os alvos
militares, os aviões de guerra norte-americanos passaram a
bombardear fazendas, barragens, fábricas e hospitais. “Eu já
tinha visto as cidades europeias destruídas pela guerra, mas eu
nunca tinha visto uma devastação parecida com a da
Coreia”, reconheceu o
juiz da Suprema Corte.
Quantos
americanos ficaram sabendo do desajustado plano do general Douglas
MacArthur de ganhar a guerra contra a Coreia do Norte em apenas 10
dias? MacArthur, que liderou o Comando das Nações Unidas durante o
conflito, queria jogar
“entre 30 e 50 bombas atômicas (…) ao longo da fronteira com a
Manchúria”, o que teria “deixado para trás (…) um cinturão
de cobalto radioativo”.
Quantos
americanos ouviram falar do massacre de No
Gun Ri,
em julho de 1950, quando centenas de coreanos, agrupados embaixo de
uma ponte, foram mortos por aviões bombardeiros e pelo 7º Regimento
de Cavalaria? Detalhes do massacre vieram à tona em 1999, quando
a Associated
Press entrevistou
dúzias de oficiais aposentados. Um veterano lembra de
ouvir o capitão dizer: “Pro inferno com essa gente. Vamos nos
livrar deles todos”.
Quantos
americanos aprendem na escola sobre o massacre
das Ligas Bodo,
quando dezenas de milhares de suspeitos de comunismo foram mortos, no
verão de 1950, por ordem do presidente Syngman Rhee, o homem forte
da Coreia do Sul e aliado dos Estados Unidos? Relatos
de testemunhas dão
conta de que “jipes lotados” de oficiais do exército americano
estavam presentes e “supervisionaram a carnificina”.
Milhões
de cidadãos americanos comuns devem sofrer da tóxica combinação
de ignorância e amnésia, mas as vítimas dos golpes de Estado,
invasões e bombardeios americanos ao redor do globo tendem a não
padecer do mesmo mal. Pergunte aos iraquianos e aos iranianos, aos
cubanos e aos chilenos. E, claro, aos norte-coreanos.
Como
escreve o historiador Charles Armstrong, da Universidade de Columbia,
em seu livro “Tyranny
of the Weak:
North Korea and the World, 1950-1952”,
“os ataques aéreos norte-americanos deixaram uma marca profunda e
duradoura” nos habitantes da RPDC. “Mais do que qualquer outro
fator, foi isso que os levou os norte-coreanos a desenvolver um senso
coletivo de ansiedade e medo de ameaças externas, que permaneceu
após o fim da guerra”.
Não
me entenda mal. Não estou insinuando que o regime violento e
totalitário de Kim seria menos violento e totalitário do que é
hoje se os Estados Unidos não tivessem bombardeado o país inteiro
há 70 anos. Tampouco tenho esperanças de que Donald Trump, logo
ele, apresente desculpas formais a Pyongyang em nome do governo dos
Estados Unidos pelos crimes de guerra cometidos entre 1950 e 1953.
Mas
o fato é que, dentro das fronteiras da Coreia do Norte, “ainda se
vive nos anos 1950, (…) e o conflito com a Coreia do Sul e os
Estados Unidos ainda está acontecendo. O povo do Norte se sente
acuado e ameaçado”, segundo Kathryn
Weathersby,
autoridade acadêmica no assunto.
Se
uma nova guerra da Coreia, potencialmente nuclear, deve ser evitada e
se, como escreveu Milan Kundera, “a luta do homem contra o poder é
a luta da memória contra o esquecimento”, cidadãos americanos
comuns não podem mais se permitir esquecer a morte, a destruição e
o legado devastador da primeira Guerra da Coreia.
Tradução: Carla Camargo Fanha
Fonte: "theintercept"
Meu Comentário:
Será que o PCdo B ainda acha que há socialismo na Coreia do Norte (para o partido a China é socialista)? Se a resposta for sim, estaremos diante do primeiro "socialismo monárquico" da história.